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Carga de jogos no futebol de elite "é quase inumana"

Beto, quando venceu a Taça UEFA pelo Sevilha.   Foto Arquivo/REUTERS/STEFANO RELLANDINI
Beto, quando venceu a Taça UEFA pelo Sevilha.   Foto Arquivo/REUTERS/STEFANO RELLANDINI

A carga de jogos que os futebolistas que jogam competições nacionais e internacionais, por clubes e seleções, é "quase inumana", alerta o antigo guarda-redes internacional português Beto.

"Hoje em dia, com quase 70 jogos, é inumano. É quase inumano. Os atletas não se transformaram, nos últimos anos, em robôs. Continuam a ter as mesmas funcionalidades de décadas anteriores. Aumentou o número de jogos, a exigência, a pressão mediática, das redes sociais, da indústria", diz, em entrevista à Lusa.

Beto lembra a sua temporada de 2013/14, em que, ao serviço dos espanhóis do Sevilha, conquistou a Liga Europa (contra o Benfica na final), cumprindo 43 jogos, ao todo, no emblema do sul de Espanha, a que se somaram mais cinco pela seleção.

Além dos jogos em si, fala também dos "estágios" e outros momentos na época, sobretudo nesse ano que culminou, no verão, com o Mundial2014, no Brasil, em que acabou por alinhar em dois encontros.

Se há 10 anos a situação já levava a que sentissem "algumas dificuldades em certos momentos da época", hoje em dia a situação cresceu exponencialmente, sem "sentido nenhum".

Atualmente, jogadores como o argentino Julián Alvarez, hoje no Atlético de Madrid, estão a fazer 75 jogos por época, como aconteceu ao avançado na época 2023/24 no Manchester City, com viagens constantes entre clube e seleção, num 'top' de um relatório da FIFPro que inclui os 70 jogos do turco Akturkoglu, antes de chegar ao Benfica, pelo Galatasaray, mas também os 64 jogos de António Silva (Benfica e Portugal) e os 60 de Rúben Dias (Manchester City e Portugal), uma das vozes críticas em tempos recentes.

"Continuam a precisar de dias de descanso, da sua vida. Se queremos os protagonistas a 100%, também necessitam do descanso e da sua vida familiar. (...) Está a faltar que o verdadeiro protagonista, o atleta, se pronuncie. Tenho visto alguns portugueses, como o Bernardo Silva e o Ruben Dias [falar sobre isto]. Os jogadores têm de ser a voz de desacordo com toda esta calendarização", afirma.

O relatório, de setembro deste ano, coloca ainda o foco nos (muitos) quilómetros de viagem, num tabela em que o japonês do Sporting Hidemasa Morita figura nos primeiros lugares, com 142.329 quilómetros divididos por 25 viagens -- Alvarez, de novo, é recordista de viagens, com 39, e segundo mais 'viajado', com 153.869 quilómetros.

Por outro lado, o norueguês Fredrik Aursnes, do Benfica, foi na época transata o exemplo máximo de jogos 'back to back', ou seja, mais do que uma vez na semana ou com um período de cinco dias ou menos entre momentos competitivos, com 51 jogos nessa condição -- o médio anunciou o abandono da seleção em março último --, seguido por Cristiano Ronaldo (Al Nassr), com 50 -- Di María, também 'encarnado', esteve próximo, com 48.

Sem ser "apologista de extremos", como "falar em revolta" ou numa greve geral, defende antes "o diálogo, a consulta", e que os jogadores sejam ouvidos pelas entidades que regem o futebol mundial.

"Esta é uma discussão muito ampla, porque podem dizer que os clubes podem alargar os plantéis, mas é preciso capacidade financeira para isso. E se vamos buscar já à formação, vamos desequilibrar a formação. É importante procurar soluções com o atleta", reforça.

Para o antigo guardião de Sporting ou FC Porto, numa carreira que passou por muitos países e conta com dezenas de títulos, a começar por quatro Ligas Europa, uma com os 'dragões' e um 'tri' no Sevilha, e uma Liga das Nações, por Portugal, a situação afeta os futebolistas a vários níveis.

"Lesões sempre existiram e vão existir sempre, mas nesta quantidade é uma coisa absurda. O atleta, que está bem, começa a ver outros a cair em lesões e preocupa-se. Se calhar, não mete o pé com tanta força, não disputa com tanta intensidade, porque o corpo também já pede descanso. O atleta vai andar sempre no limite e no risco de lesão", avisa.

Questionado sobre se os jogadores são esquecidos enquanto seres humanos, repudia a expressão, que diz muito ouvir: "ganham muito, têm é de jogar", porque "não faz sentido nenhum".

"São atletas de alta competição, altamente preparados física e psicologicamente para a competição, mas isto que observamos hoje em dia... por outro lado, começa a retirar-se, mesmo para os treinadores, tempo de trabalho, de treino, para melhorar. Os atletas estão constantemente em recuperação", analisa.

Se começa "a não ser humanamente possível o que têm feito até agora", defende a FIFPro, a entidade que representa e defende os futebolistas nos seus direitos a nível global, como um caminho para as suas reivindicações.

Lembrando que foi este organismo que apoiou os capitães dos clubes turcos, em que se inseria então a representar o Goztepe, para parar o campeonato em plena covid-19, espera agora que os jogadores possam encontrar-se aqui.

"Não podemos passar do silêncio à greve. No intermédio, há essa entidade, com a qual os jogadores se podem informar, falar, expor, e através dela fazer chegar às entidades competentes todas as dificuldades que estão a sentir", defende.