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Notas intemporais

Decorreu, na semana passada, no Conservatório – Escola das Artes da Madeira, a primeira edição das Jornadas da Música Histórica “Notas no Tempo”. Visando explorar a riqueza e diversidade da música histórica na Madeira e no espaço atlântico, este evento iluminou várias facetas da música madeirense, desde a sua origem até à sua influência no cenário musical atlântico.

O valor desta iniciativa está alinhado com o entendimento de que a música tem a capacidade de servir como uma ferramenta poderosa para preservar a herança e as tradições culturais. Abrangendo os costumes, crenças, práticas e artefactos que definem e identificam uma comunidade e diferenciam-na das outras, a herança cultural está continuamente a ser ameaçada pela modernização, globalização e outros fatores que a podem atenuar, ou até erradicar. Por isso, a sua preservação é essencial para a manutenção da diversidade, promoção do entendimento entre as comunidades e a formação da sensação de identidade e pertença.

A música é também uma ferramenta da educação, através da qual as gerações mais novas podem conhecer a sua herança e as tradições. Por isso, um dos papéis fundamentais da escola é também o de ensinar como as preservar.

As línguas musicais podem perecer da mesma maneira que as línguas faladas. Já há dois séculos, o colecionador alemão de canções folclóricas, Ludolf Parisius, escrevia que “quem quiser fazer a recolha musical junto do povo devia se apressar – as canções folclóricas estão continuamente a desaparecer”. Até uma das maiores coleções gravadas do nosso passado musical, a da Biblioteca do Congresso dos EUA, começou a acumular os seus fundos apenas nos anos 30 do século passado. Já nos meados desse século os musicólogos estavam a percorrer o mundo, procurando documentar e preservar a música dos nossos antepassados, gravada pelas editoras etnográficas que ofereciam apoio altruísta.

O mais importante é entender que a preservação não se cinge à manutenção das gravações, mas sim que o seu objetivo principal é o de salvaguardar a expressão cultural, uma vez que a música reflete sociedades, emoções e eventos, e cada nota comunica a sua história. Há quem considere o dia 11 de março de 1829 como uma data seminal nesse sentido: foi o dia em que o compositor e maestro alemão Felix Mendelssohn revelou ao mundo a grandeza da Paixão de S. Mateus, de J. S. Bach, que não foi ouvida em público durante um século. A música de Bach “renasceu” depois desse concerto, mas o que verdadeiramente nasceu foi todo um movimento em prol da restauração do nosso passado musical. E foram mesmo alguns compositores mais conhecidos que demonstraram grande interesse pelo passado. Giuseppe Verdi apelou uma vez: “Regressemos ao passado e isso será um progresso!” Johannes Brahms colecionava partituras de música antiga, chegando até J. S. Bach e Heinrich Schütz. Um dos compositores mais vanguardistas do início do séc. XX, Anton Webern, que compunha música atonal, fez a sua dissertação editando a coletânea dos motetos baseados em cantos gregorianos, composta por Heinrich Isaac no início do séc. XVI.

O musicólogo Harry Haskell sugere que o revivalismo musical é “simplesmente mais um exemplo da ânsia pelas raízes que caracterizam a nossa sociedade desenraizada”. Efetivamente, enquanto a nossa vida diária muitas vezes parece isenta de raízes, sentimos os testemunhos culturais e artísticos como uma âncora constante.

E a preservação inclui não só a música do povo como a “clássica”, jazz e todos os outros idiomas musicais que iluminam o nosso passado, mas também a música mais recente que nunca foi estudada e cientificamente analisada. É o caso do projeto “Grupos e compositores portugueses de música contemporânea: preservação do património coletivo” do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical) da UNL, que foca as últimas três décadas do séc. XX, pretendendo valorizar e manter viva essa herança relevante da música contemporânea portuguesa.

Enquadrando-se na lógica acima exposta, todo o propósito das “Notas no Tempo”, dessa e das futuras edições, é de as tornar verdadeiramente intemporais, presentes e assentes na construção e revitalização da nossa tradição musical.