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Crónicas

Uma gambiarra no alpendre

E estamos outra vez quase na Festa. A parte boa é que a Festa ainda é a Festa; a parte que me incomoda é que não tenha sobrevivido uma única resolução de Ano Novo. A outra, ainda mais perturbadora, é perceber que, de há uns anos para cá, o tempo acelerou. A minha mãe, as minhas tias e todos os adultos com quem cresci avisaram que ia ser assim, mas eu arquivei como “conversas de velhos”.

A minha classificação de “velhos” estendia-se a todas as pessoas com mais de 30 anos em quem não encontrava semelhanças, nem no modo de pensar e menos ainda na maneira de vestir. Os anos 80, com o sintetizador a marcar o ritmo a todas as canções, estavam no fim e a minha geração queria ser diferente e vestir calças de ganga, t-shirts brancas e blusões de cabedal.

Eu fazia parte desse grupo das calças de ganga surradas e, se calhar, por isso, não achava possível que um dia, daí por muito tempo, estaria no lugar das minhas tias, da minha mãe, das mulheres de meia idade que pintam o cabelo e se espantam com os meses que passam a correr, com a velocidade de como se vai de Janeiro a Novembro sem que tenha acontecido algo de extraordinário.

Como as senhoras que iam às quartas-feiras receber o dinheiro e levantar o bordado. O tempo não era apenas rápido, era um arrastão impiedoso que levava os pais, os irmãos, os maridos. As viúvas distinguiam-se pelo luto eterno, as outras falavam da saudade. Ou dos sonhos em que havia mais mortos do que vivos. A minha tia Alice sonhava muito com a mãe, o pai, o tio cambadinho e o avô, que morreu com 100 anos e seis meses.

A vida dos “velhos” era feita de pessoas vivas, de outras que estavam embarcadas num lugar muito longe e de mortos, todos amados por igual e lembrados na Festa. A minha tia Conceição colocava os postais que chegavam pelo Natal em cima da cómoda e mandava rezar missas para a 1ª oitava, em São António e na Visitação. E, de uma certa maneira, a memória dos meus avós e bisavós acompanhou o meu crescimento.

Aos 18 anos, quando deixei a minha casa do Laranjal pela primeira vez para ir estudar para Lisboa, o apego da minha mãe e das minhas tias aos que já tinham morrido parecia-me estranho, havia muitos fantasmas e uma saudade que nunca as deixava. Eu era nova e acreditava que, comigo, ia ser tudo diferente, mas a Festa está a chegar e à mesa do almoço já não estão apenas os vivos. E isso dói, mas a parte boa é que, no Laranjal, como em todos os outros sítios, há-de haver árvore, escadinha e uma gambiarra no alpendre.