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Desinformação amplifica tragédias

Quem não se lembra da aluvião provocada na Madeira pelas chuvas fortes do dia 20 de fevereiro de 2010? Imediatamente, espalharam-se as mais incríveis histórias que elevavam o número de mortos e amplificavam ainda mais a tragédia. Ouviram-se vários relatos sobre os supostos cadáveres retirados do parque de estacionamento do Centro Comercial Anadia, cobertos com lençóis brancos. Estas informações falsas ganharam eco nas redes sociais e até mesmo nalguns órgãos de comunicação social. Um jornal nacional publicou mesmo uma fotografia de capa com um título sensacionalista que estabelecia uma comparação do estabelecimento com um cemitério. Chegou-se ao ponto de insinuar que a Região escondia vítimas mortais para não prejudicar o turismo.

No combate à desinformação, desempenharam um papel determinante tanto o Gabinete de Crise criado pelo Governo Regional como os órgãos de comunicação social regionais, que foram incansáveis no esclarecimento da população e na reposição da verdade, publicando inclusive as fotografias de todas as vítimas mortais. É que, afinal, não terá sido encontrado nenhum corpo no centro comercial e o número oficial de mortos (cerca de meia centena) não podia ser refutado, porque não se conseguiria silenciar ‘ad eternum’ familiares, amigos e conhecidos.

Refiro-me a este dia fatídico porque, recentemente, a depressão Dana assolou a região de Valência, Espanha, e, ainda sem conhecer a dimensão da calamidade, era impossível não estabelecer um paralelo com o nosso 20 de fevereiro de 2010, pois as primeiras imagens e vídeos que nos chegavam nos faziam recuar no tempo, àquele dia em que o temporal fustigou diferentes localidades da Madeira, fazendo com que as ribeiras transbordassem e deixassem um rasto de destruição sem memória.

Infelizmente, a tragédia em Espanha foi ainda maior do que a nossa. Como resumira uma amiga espanhola, ao perguntar-lhe se estava tudo bem, o que aconteceu foi “um horror, um desastre, uma catástrofe sem precedentes com muitos mortos e muita tensão política”. Pouco a pouco, a calamidade foi ganhando proporções cada vez maiores e o número de mortos já ascende as duas centenas.

À semelhança do que aconteceu na Madeira, os órgãos de comunicação social e as plataformas de ‘fact-checking’ de Espanha têm sido incansáveis na verificação dos factos, pois os desinformadores têm uma apetência muito grande pela difusão de conteúdos falsos sobre temas da atualidade, com preferência por acontecimentos trágicos, pelo facto de estes gerarem interesse e conseguirem mais facilmente partilhas.

Passados mais de 14 anos, com telemóveis mais sofisticados, os conteúdos falsos proliferam de uma forma ainda mais preocupante porque há mais plataformas de redes sociais. Por outro lado, os denominados ‘influencers’ vêem na desgraça uma forma de ganhar ou continuar a ter protagonismo. Como noticiou recentemente o jornal El País, com a Dana, houve mesmo aproveitamento por parte de alguns desses líderes de opinião.

O Centro Comercial Bonaire, em Aldaia, Valência, foi completamente devastado pela passagem da Dana e, tal como aconteceu no Centro Comercial Anadia, foi colocada a possibilidade de haver mortos nos parques de estacionamento. Antes e até mesmo depois de se confirmar que não havia nenhuma vítima, a desinformação circulou de forma avassaladora: nalgumas publicações, denominou-se o centro comercial de cemitério e alguns ‘influencers’ falavam de milhares de mortos no parque subterrâneo do estabelecimento. Alguns dos conteúdos falsos publicaram fotografias de camiões com arcas frigoríficas, onde supostamente se transportavam cadáveres. No entanto, as imagens eram do ano passado. As plataformas de verificação de conteúdos não tiveram mãos a medir. Só Maldita.es verificou 14 publicações virais sobre esta temática.

Lembre-se que a população de Valência se sentiu inicialmente abandonada e exigiu, desde o primeiro momento, mais celeridade por parte dos governantes. A sua má receção às visitas oficiais do Presidente da República e do Rei de Espanha demonstraram de imediato o seu descontentamento. Semanas depois, milhares de pessoas se juntaram, com firmeza, em manifestações exigindo a demissão do governante local.

Sem avaliar as decisões políticas ou o ‘timing’ de intervenção por parte dos governantes espanhóis, a verdade é que muitas vezes os conteúdos desinformativos servem para politizar ou inflamar os sentimentos das pessoas. Foram tantas as publicações falsas na situação de Valência que provavelmente o sentimento de revolta aumentou. Quem o disse foi o próprio Rei Felipe VI, que se mostrou preocupado com os efeitos da desinformação, lembrando que infelizmente há muita «intoxicação informativa».