À porta da loja
As minhas tias e a minha mãe não percebiam como podia ser tímida
Os rapazes e as raparigas passavam por mim em grupos e com destino ao lugar mais famoso da cidade. A loja Paris, onde a minha mãe me obrigava a ficar à porta com os sacos e embrulhos, ficava no caminho daquele poiso de gente nova, que ia da Sé ao Golden e era tão popular que se sabia dele em todas as escolas. A minha vergonha era estar ali, à mercê de todos os olhares, mesmo ao lado de uma montra cheia de caixas com cuecas e soutiens de renda e numa figura que não ajudava.
As raparigas vinham de jeans justos e eu era pouco mais do que uma criança, com meias de algodão e um corpo que teimava em crescer, em ser maior do que a roupa que havia à venda para as pessoas de 13 ou 14 anos. E tinha o azar de servir de carregador de sacos e embrulhos, enquanto a minha mãe adiantava as compras para Festa. “Depois é pior, a cidade fica cheia de povo” e, por isso, ali eu estava a desejar ser mais velha, mais magra e a querer sair depressa daquela porta.
A minha mãe nunca se despachava antes de se formar uma montanha de caixas, de soutiens e cuecas em cima do balcão. Ou era caro demais, ou barato, ou tinha rendas ou era feio e de pouca qualidade, ou não havia o número ou a cor. E havia cada vez mais gente na rua, a formar grupos, enquanto lá dentro se acertava um desconto e conversava, “nem todos são como tu, dos que nunca têm nada para contar”. Não era bem isso, era timidez e falta de jeito.
Se soubesse como eu gostava de estar num daqueles grupos que avistava ao longe, a rir e a conversar. Eu não sabia o que falavam aquelas pessoas, mas sabia tudo sobre a novela, o Festival da Eurovisão e nunca perdia o telejornal. Também lia os jornais esquecidos pelos clientes portugueses que a minha tia Conceição trazia do hotel e era capaz de identificar dois ou três cantores. O problema era a forma como as palavras saíam da boca num tom que nunca era o adequado.
As minhas tias e a minha mãe não percebiam como podia ser tímida. As mulheres da família falavam muito sempre, em todos os momentos. No autocarro com pessoas que não conheciam, na sala de espera dos consultórios, com os lojistas e os vizinhos e, quando não havia tema, socorriam-se do tempo, que estava quente ou frio ou a chuva ou o preço das coisas, que naqueles anos, subia sempre muito.
Eu era desajeitada até nisso,
em fazer conversa e, no intervalo da escola, dava por mim no meio de silêncios desconfortáveis sem saber a deixa seguinte perante adolescentes implacáveis. Ao longe, encostados nos muros, aqueles grupos de gente nova não davam sinais de problemas de socialização, não havia pausas incómodas. À distância pareciam-me bonitos, elegantes e eu só queria crescer, ficar magra e vestir outras roupas para ter amigos como os que via da porta da loja Paris.
Antes de tudo isso acontecer tinha de carregar os sacos e embrulhos até à porta de outra loja, depois para a paragem do autocarro que me havia de devolver ao Laranjal. E era lá, na minha casa e no meu quarto, onde podia ser a Lina Marta que eu contava crescer depressa e passar da gordinha desajeitada a uma jovem elegante da cidade.