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A batalha pela alma dos EUA

As presidenciais americanas de 2024 refletiram uma batalha pelo tecido social dos EUA, perigosamente polarizado, e pela própria ideia de democracia, que depende, para o seu bom funcionamento, de negociações, compromissos e consensos, arquitetados pelos pais fundadores através de um sistema de pesos e contrapesos, hoje quase impossível de gerir.

Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag, inicialmente um herói dos liberais do Ocidente pelas suas críticas ao regime soviético, pelo qual foi preso político e depois expulso, no seu famoso discurso em Harvard (1978), criticou o Ocidente liberal por promover uma liberdade desprovida de significado moral. Para ele, o vazio espiritual, material e consumista no qual o Ocidente parecia imerso abriria portas para uma fragmentação social, onde os indivíduos preencheriam a falta de valores profundos com novas ideologias, numa busca de sentido que facilmente se desviaria para causas radicais.

Esse vazio viria a ser preenchido, na esquerda, por uma cultura woke, que se estabelece como uma nova religião laica. Defendendo, muitas vezes de forma perversa, a justiça social e as minorias, esta ideologia desdobra-se numa rígida moralidade secular, que exige adesão incondicional aos seus valores e, em muitos casos, marginaliza ou cancela vozes dissidentes, sem direito a perdão ou arrependimento. A direita respondeu a esse vazio com uma cruzada moral contra o que considera uma erosão dos valores americanos promovida pelo status quo e pelas elites progressistas, agregando muitos descamisados da globalização económica, mas com a capacidade de falar diretamente sobre os problemas percecionados pelas pessoas, como a segurança e economia.

Ambas as posições são usadas como armas numa batalha essencial salvífica da América, o que torna os diálogos e consensos quase impossíveis e contribui para um clima de guerra cultural. Os dois lados intitulam-se como guardiões da virtude e qualquer concessão ao oponente é vista como traição.

Para Fiódor Dostoievski, a liberdade sem uma base moral leva ao niilismo e ao extremismo. Na sua obra Os Demónios, descreve como a falta de um sentido profundo de vida ou fé pode levar ao radicalismo, à violência e à alienação. Vemos isso hoje nos EUA: Esta busca por uma causa ou um propósito, por uma identidade e pertença numa sociedade atomizada, fragilizada no seu núcleo de valores e de bem comum, tem vindo a transformar diferenças ideológicas em antagonismos absolutos e fervorosos, como se os oponentes fossem “demónios” a serem derrotados e não cidadãos com pontos de vista diversos.

Há quase 200 anos, Tocqueville observou que o modelo americano, farol do Ocidente liberal em geral, apesar das suas liberdades, estava vulnerável a um individualismo egoísta que poderia levar a sociedade a focar-se exclusivamente nos próprios interesses, em bolhas ideológicas e ignorando os interesses coletivos. Sem uma cultura cívica e de consciência para a responsabilidade e valores mútuos, a democracia torna-se um meio para atender aos desejos dos indivíduos, e não um projeto global de sociedade, agravando a desintegração dos laços comunitários e o declínio do diálogo, distanciando-se de um sentido compartilhado e ampliando a desconfiança entre cidadãos e entre estes e as instituições.

Descobrir como resgatar o respeito pelas diferenças e um sentido de compromisso coletivo que supere o vazio existencial que ambos os polos hoje preenchem de forma extremada é uma tarefa difícil, num mundo tecnologizado e que capitaliza através do imediatismo, excitação e divisão. Mas é o que o espírito democrático exige, sob pena de os custos a pagar serem bastante elevados, como a História já nos tentou ensinar.