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Crónicas

Rien ne va plus (diz-se na banca da roleta ao fechar o jogo)

1. É novembro… e a Madeira, o arquipélago, que às vezes penso que flutua e outras vezes não, dança ao som de vozes roucas, de corredores compridos, de gabinetes cheios de silêncios tão densos que se podem cortar à navalhada.

A moção de censura — dizem, murmuram, sussurram entre colarinhos apertados e gravatas que pressionam gargantas — foi lançada ao ar por um partido que, se tivesse cor, seria um cinza de gritos e de raiva.

Mas o eco não pára no PSD, onde um homem, Miguel Albuquerque, se mantém à tona com as mãos calejadas de segurar uma corda velha, desfiada de tantos casos que murcharam ao sol. Não, a acusação, a palavra amarga, espessa, pegajosa, também se vira para o PS, a quem a Moção chama cúmplice ético, cúmplice moral, cúmplice de um silêncio que a própria ilha sabe interpretar como consentimento. Esta, é uma das melhores partes do escrito. Mas o Chega tem princípios, e se o PS não gosta deles, o Chega arranja outros.

Estamos aqui em estado de espera, como quem aguarda o regresso do navio que tarda. Esperámos que o PS fizesse aquilo que todos sabem que lhe compete, menos os próprios, que levantasse a voz e assumisse a liderança, que fosse mais do que os retratos nas paredes da sede socialista e os gestos calculados das mãos. Mas não, deixaram que a moção fosse uma espada empunhada por outros, de olhos que não piscam e mãos que tremem de tanto querer agarrar.

O PS, coitado, hesitou. E a hesitação, como sabem os mais velhos e as aves marinhas que sobrevoam o Atlântico, é pior do que um passo em falso. Porque o passo em falso ainda é um passo, ainda é movimento, enquanto a hesitação é um chão que não se pisa, um eco perdido na maré. Nós, ficámo-nos, impotentes, a olhar este teatro de sombras e ventos cruzados.

Pergunto-me, enquanto ouço os carros a passar sobre a janela, se Miguel Albuquerque entende o que representa. Não é só um homem, um nome escrito com tinta que as chuvas dissolvem. É uma ideia velha, que respira por pulmões cansados, uma governação que se amontoa como papel velho e esquecido, amarelado, nos gabinetes onde os móveis rangem e as persianas se fecham por vontade própria.

Uma Autonomia flutuante, ao sabor da maré, é um luxo que não nos podemos permitir. Decidir, isso sim, mesmo que a decisão seja amarga como a aguardente. Decidir por transparência, por uma governação que se olhe ao espelho sem desviar os olhos.

Se votar a favor desta moção é afirmar que o presente governo já não serve, que a Madeira merece mais do que promessas que ecoam e se dissipam, então que assim seja. Porque a verdade é que não é só Albuquerque o problema, mas também o que ele simboliza, a continuação de algo que se deixou adormecer ao sol, sem um sobressalto, sem um despertar, sem transparência, sem ética, nem moral.

A ilha murmura, as portadas largas ainda riscam as paredes. E nós aqui vamos sabendo que, por trás de cada um, há uma brisa que nos empurra para a frente, ou para trás, mas nunca para o lado.

A política não espera.

2. De pé na sala vazia, com o olhar fixo numa parede que já assistiu a muitos discursos sem substância, move os lábios. As palavras saem e depois voltam, como se não quisessem sequer estar ali. “Se a referência ao PS for um obstáculo”, diz, com a voz embargada de uma falsa gravidade, “então que se retire.” Na sala, o eco é apenas um riso seco, uma gargalhada muda de quem já assistiu a este bailado, uma dança de princípios que se dobram e contorcem até não restar nada além de uma sombra vaga, um esqueleto oco.

No fundo, Miguel Castro e o Chega sabem bem o que fazem. Jogam com as palavras como quem joga cartas marcadas, sem remorso, sem hesitação, sem as entender. Dizem-se comprometidos com uma nova Madeira, mas comprometidos com o quê, exatamente? Com a ideia de que se os princípios não servem, basta inventar outros? Se o PS não gosta do que vê, muda-se a pintura na parede, apaga-se, pinta-se por cima com uma tinta nova e fresca que só dura até à próxima chuva. Porque, para Castro, princípios não são alicerces, são decorações baratas, e as convicções, essas, são vendidas a preço de saldo no mercado da sobrevivência política.

“Queremos uma nova página”, repete, enquanto a sala parece suspirar, cansada da farsa. Mas uma nova página em branco, sem conteúdo, não passa de uma página vazia. Não é a mudança que se promete, mas o eco de uma promessa, um som sem corpo, uma respiração fraca. O Chega, com a sua vontade de tudo e de nada, compromete-se com a saída de Miguel Albuquerque, não por um sentido de ética, mas porque sabe que precisa do espetáculo, da teatralidade que lhe permita manter o foco, mesmo que seja só por mais um dia.

Saíram da reunião do Orçamento com o Secretário das Finanças dizendo estarem animados com o documento. Animados. A palavra paira no ar, estranha, deslocada, como um sorriso no rosto de um condenado. E o que significa essa animação, senão a confirmação de que a política é um palco onde até os gestos vazios se ensaiam para as câmaras?

E é aqui que o enigma se adensa: não se entende a aprovação do Orçamento de 2024, ainda que sob o manto de uma necessidade urgente, pois a Madeira, dizem, não podia ficar sem essa ferramenta. A ilha precisava de algo que lhe desse estrutura, de um alicerce no meio da deriva. Mas agora, num “volte-face” que cheira a contradição e desespero, quer-se que fiquemos sem Orçamento para 2025. Como se o que ontem era vital se tornasse hoje descartável, um objeto que se empurra para o canto com um gesto rápido, como quem varre migalhas para debaixo do tapete.

Miguel Castro, que olha para o reflexo no vidro e não vê nada, sabe que as suas palavras não são mais do que restos atirados a uma sala vazia. Sabe que, ao oferecer apagar as linhas sobre o PS, entrega-se, entrega o partido e entrega a política ao jogo mais sujo: o de moldar os princípios conforme a conveniência, como uma massa que se modela e se atira ao forno sem receita. E agora, de olhos postos numa folha de cálculos e promessas, não hesita em exibir o seu entusiasmo passageiro, uma chama que arde só até à próxima corrente de ar.

A sala silencia-se de novo, mas a Madeira não. Estas ilhas, que já viram tanto, continuam à espera por mais do que promessas vazias e discursos que se dobram conforme o vento. E Miguel Castro, ainda com os lábios entreabertos, não ouve as pedras murmurarem, as pedras que sabem, há muito, que a política que se dobra nunca se endireita.

3. E a sala, cheia de pequenos ruídos de papéis nervosos e tosse encenada, parecia um teatro onde os actores, embebidos do seu próprio monólogo, não entendem que a plateia já se levantou para ir embora. Paulo Cafôfo, emoldurado pelas bandeiras que tremulavam sem vento, como se tivessem desistido de toda a brisa de mudança, prosseguiu o seu discurso. A cada palavra, o verbo tornava-se mais espesso, mais denso, até que já não era possível distinguir entre a crítica ao adversário e a autocrítica que lhes escorregava entre os dentes como veneno. “Cúmplices éticos e morais”, repetia a moção, e ninguém ali parecia sequer corar de vergonha, porque em política a vergonha é uma comodidade que poucos se podem dar ao luxo de carregar.

Vejam o PS, dizia o texto: um gigante de pés de barro, que vota a favor da própria ineficácia com o aplauso contido de quem precisa de se convencer de que a rendição também é um tipo de vitória. Porque se Miguel Albuquerque governa com punho de ferro e sorriso de marfim, o PS permanece, não como oposição, mas como um coro grego que lamenta as tragédias sem ousar mudar a peça. E a ironia, claro, é que ao votarem favoravelmente a moção, assinam com tinta invisível a confissão de que se deixaram enredar, não na teia da derrota, mas na da irrelevância.

E é assim que, entre sorrisos velados e apertos de mão com suor frio, o Partido Socialista crava em si a estaca que há muito repousava na gaveta dos segredos mal guardados. Como se o papel que assinam não fosse uma declaração de guerra a si próprios, mas uma carta de amor ao conformismo. “Votamos a favor”, proclamaram, sem perceberem estarem, ao mesmo tempo, a votar a favor do seu próprio epitáfio político. E é esta a ironia máxima, esta tragédia quase shakespeariana: quando um partido é a sua própria oposição, a sua própria crítica, a sua própria sombra.

E ninguém ousou rir. Não ali, onde as paredes ouviam demais e os olhos filmavam para quem quisesse ver. Mas, fora dali, nas ruas feitas de histórias esquecidas e de povo que há muito deixou de acreditar em discursos, o eco do riso abafado ressoava. Não de escárnio, mas de uma espécie de cansaço. Porque há coisas que só quem conhece a fadiga da política compreende: votar a favor da própria censura não é coragem, é a elegância desesperada de quem se quer manter à tona quando já afundou há muito.

E a sessão encerrou-se com palmas, não de entusiasmo, mas daquele aplauso protocolar que ecoa vazio.

E o PS saiu, cabeça alta, porque em política a ilusão é mais valiosa que a própria dignidade.