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Análise

Autonomia desrespeitada

Perante tanto atropelo, quem quererá acabar com a agonia e a descrença?

Numa República com 114 anos há uma Autonomia com quase 50, que não sendo miragem, nem sempre é respeitada dentro e fora do seu espaço vital. E devia sê-lo, quanto mais não seja para que este Portugal democrático “seja mais livre, mais igual, mais justo e mais solidário”, como sugeriu ontem Marcelo Rebelo de Sousa.

A Autonomia assenta em alicerces inquestionáveis, embora passíveis de revisão, como a Constituição, o Estatuto Político-Administrativo e diversas competências legislativas, fiscais e administrativas que permitem ou deviam permitir que o governo da Região funcione e, sobretudo, seja capaz de gerir com mestria a maioria dos assuntos, dos problemas e das ambições dos cidadãos.

Uma missão que devia ser feita em cooperação com o governo da República, não só ao nível das matérias soberanas das quais não abre mão, como também com todas as outras que implicam diálogo, ponderação e decisão. Para que o subsídio de mobilidade não pareça esmola e, simultaneamente, um luxo que nos sai caro cada vez que viajamos. Para que o diferencial fiscal seja posto em prática sem perda das necessárias compensações financeiras. Para que os instrumentos de desenvolvimento da Região não sejam, constantemente, motivo de suspeita, ataque e até rusga. Para que o PIB não seja empolado por decisões contabilísticas arbitrárias. Para que não se repitam os casos de ausência da consulta por parte de órgãos de soberania aos órgãos das Regiões sobre matérias que lhes respeitam. Para que à boleia de incêndios e outras catástrofes se subvertam lógicas de discussão e de apuramento dos factos, violando a Lei e os bons hábitos democráticos.

A Autonomia regional visa a participação democrática dos cidadãos, a promoção do desenvolvimento regional e a gestão de interesses próprios e colectivos de cada lugar, definidos em pormenor no Estatuto, o mesmo que estabelece direitos, princípios e valores. Mesmo assim há quem se vergue, prescindindo do que é inegociável.

Tudo piora quando os madeirenses se assumem como principais inimigos da Autonomia, enfraquecendo-a, contribuindo para tenha má imagem e seja vista como uma eterna pedinte. Como se a dependência financeira significativa do orçamento nacional fosse crime e por si só aniquiladora do mérito, da criatividade e do talento insular. Como se o clientelismo político fosse um exclusivo da Região que, segundo alguns, favoreceu sobretudo a criação de redes de dependência e de pagamento de favores a lealdades políticas. Como se a alegada falta de participação cívica activa fosse passível de ser confundida com a ausência de sentido crítico ou desinteresse pelo escrutínio, fiscalização e pressão face aos poderes instalados. Como se o projecto autonómico que se quer dinâmico e evolutivo não fosse validado com frequência.

Desde que a Autonomia da Madeira foi instituída houve vários políticos e correntes que a criticaram, tanto em relação à sua forma de implementação, como ao seu funcionamento. Ora porque alguns querem que seja plena ou total. Ora porque muitos sentem que é frequentemente refém de caprichos e amuos. Ora porque a AR e o governo central patrocinam uma interferência indevida nas competências da Madeira e atropelam a sua essência. Ora porque quem sempre mandou desvirtua um sistema que apenas serviu de perpetuação no poder de uma única força política. Ora porque é uma ilusão denunciada quando raramente acompanhada de responsabilidade económica para garantir a sustentabilidade.

Só que esta espécie de marcha de desalinhados não pode ser eterna. Ou seja, alguém com visão deve intervir para mudar o que não serve. Aos bajuladores e aos críticos fica, por exemplo, a recomendação do social-democrata Rui Rio que ontem defendeu que os partidos políticos deveriam ser “reformados” porque se encontram “completamente enquistados” e com “uma dificuldade enorme” para dialogar com a sociedade. Na política regional, haverá ainda quem queira defender causas, travar abusos e dar passos concretos para acabar com a agonia, a descrença e o comodismo?