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Crónicas

Um ’slow’ ou como sofrer de amor

A primeira vez que vi alguém chorar por amor foi lá, no salão paroquial, num dia de ensaios, a meio dos adereços e das roupas da peça

A bola de espelhos a rodar no tecto do salão paroquial, as luzes nos mínimos e os pares do grupo de jovens a dançar ‘slows’ muito agarrados foi o mais próximo que estive de uma festa de sábado à tarde ao estilo dos anos 80. De todas as que se faziam nas garagens e as matinés nas discotecas da cidade, tenho apenas os relatos em segunda mão, das outras a quem as mães permitiam liberdades que a dona Celina não admitia. A minha mãe tinha regras e nunca abria excepções: um lugar escuro, longe de casa, com álcool e cheio de pessoas desconhecidas não era o melhor, nem o mais seguro para alguém com 14 anos.

Tantos anos depois parece-me uma avaliação sensata, mas em 1985 o pensamento era outro e muito menos compreensivo. Os adolescentes, todas as pessoas da minha idade - ou aquelas com quem me comparava - frequentavam matinés nas discotecas ou iam à casa uns dos outros aos sábados. E dançavam agarrados, namoravam ou estavam apenas juntos, a beber, a gritar comentários aos ouvidos uns dos outros e a fumar como se fossem grandes. Fazer o que se fazia nessas festas, eu só podia fantasiar.

O mais perto que estive foram aqueles encontros na paróquia, no salão onde se montava a casa de chá no arraial e havia um palco para as peças de teatro, com cenários e uma cortina de veludo vermelho. Nem sei bem como acabei lá, no meio, nas festas com rapazes e raparigas mais velhos, que estavam já a terminar o secundário ou a trabalhar. E tinham problemas reais. A primeira vez que vi alguém chorar por amor foi lá, no salão paroquial, num dia de ensaios, a meio dos adereços e das roupas da peça.

Lembro-me que tentei ser simpática, mas olharam-me com um sorriso. Sabia eu o que era sofrer e ter aquela dor atravessada no peito se a minha vida não passava de dias de tédio à espera de ver as notícias e a telenovela? O coração era um órgão independente que amava sem pedir permissão, ninguém sensato viveria de livre vontade aquela tristeza. E isso eu era capaz de entender em todos os desencontros, mesmo nos pares que dançavam muito agarrados os ‘slows’, o nome que se dava às baladas que tocavam naquelas festas.

Também nas nossas, no Laranjal, onde, claro, se viviam todos os dramas e alegrias da época. Os amores não correspondidos, os namoros atribulados, os que nunca acertavam e os que eram muito desejados, havia sempre uma ela e um ele que roubava a atenção de todos como se fossem os únicos. Só que esses eram os dramas deles, dos mais velhos, os que de facto estavam na idade de viver, de ter desgostos e planos, de se apaixonar. Eu ainda não tinha chegado a esse tempo.

Para mim, que só tinha 14 anos e estava no meio de uma festa, o mais importante era dançar ao som das músicas da rádio, com luzes a piscar e uma bola de espelhos a rodar do tecto, pouco importava o chão ser de cimento, não haver tinta nas paredes e aqueles sorrisos que me lembravam que era pouco mais do que uma criança. Poucas vezes me diverti tanto como a dançar “Wake me up before you go go” no salão paroquial.