Alô alô, é do primeiro mundo
A ideia de escrever esta carta surgiu quando, no passado dia 24 de Outubro, fiquei imobilizada na ER 222 (sentido Lugar de Baixo – Ponta do Sol). O que não se deu por mero infortúnio, nem tão-pouco por vontade própria ou por avaria, mas sim devido à total e inacreditável inoperância das autoridades (leia-se Polícia de Segurança Pública, Proteção Civil, etc.) que permitiram que um percurso que se faz seguramente em menos de 10 minutos tenha demorado 1 hora e 45 minutos, já que, a partir do túnel do Lugar de Baixo, a ER 101 se encontrava intransitável em ambos os sentidos.
Imagine-se um cenário de trânsito verdadeiramente infernal com automóveis ligeiros,
autocarros, camiões, betoneiras, turistas a fazer ponto de embraiagem a circularem nos dois sentidos numa estrada sem escapatórias e, claro, com automóveis estacionados de um lado e do outro. Valeu-nos o funcionário único da Via Litoral que se encontrava a distribuir o trânsito à entrada do túnel do Lugar de Baixo. Mente quem diz que havia polícia no local (ou certamente referir-se-ia ao literal local do acidente).
Neste caso, sensivelmente um quarto da ilha desde o Lugar de Baixo até à Ponta do Pargo viu a respetiva circulação ser cortada desde, pelo menos, as 9h30 e sem fim à vista. Às 14h, o transitar no túnel da Ponta do Sol ainda se fazia condicionado. Infelizmente, mas não surpreendentemente, não há qualquer plano de contingência numa eventualidade destas. Só caos e cada um por si. Ou aquele não foi ativado, o que também choca, mas não nos causa propriamente surpresa, só desilusão e revolta.
Espero que as autoridades competentes não estejam inertes a aguardar impulso (só e apenas) após um desfecho trágico, considerando que uma ambulância, um automóvel da EMIR ou dos Bombeiros não teriam por onde circular em tempo útil se fosse necessário. Por mero acaso e que seja do meu conhecimento, não foi. No limite, atentem aos turistas que, sem querer, perdem uma manhã de férias no trânsito. Também é curioso que este episódio tenha sido relatado em três a cinco parcas afirmações, sem qualquer interrogação ou testemunho.
Assim sendo, diga-se em voz alta: o Estado deve, numa primeira instância, estar ao nosso
serviço, sobretudo no que é mais premente e elementar, utilizando responsavelmente os impostos que bem pagamos para o efeito. Neste dia não esteve e noutros anteriores em que ocorreram situações semelhantes também não. Mas contentemo-nos, sem reivindicações ou com as que não saem da mesa do café.
Posto isto, ao final do dia, decidi alterar o rumo da carta que escrevi mentalmente naquela manhã no trânsito. Havia comprado bilhete para assistir à sessão especial do filme Limbo do realizador escocês Ben Sharrock (de 2020), exibido pelo Screenings Funchal no evento
promovido pelo Teatro Municipal Baltazar Dias e denominado «Encontro de Cultura: Acessibilidade, Mediação e Territórios Públicos». Se, porventura, o leitor tiver oportunidade de ver o filme, recomendo vivamente que não a perca. Com uma inteligente dose de humor e uma agridoce leveza, o filme retrata as mais básicas emoções e necessidades do ser humano, pelos olhos do músico Omar nos confins da Escócia que aguarda resposta ao pedido de asilo – a viver de doações, impedido de trabalhar, separado da família e fugido da guerra que assola a Síria. As conferências que se seguiram também levantaram questões pertinentes, ainda que muito superficialmente. A iniciativa é de louvar, sendo certamente temas merecedores de discussão e reflexão sérias.
Concluo sublinhando que assistir ao filme me ajudou a colocar a manhã em perspetiva.
Somos todos seres humanos com direitos, deveres e liberdades, mas convém relembrar que há
uns que lutam pela sobrevivência ao mais básico nível. Sobrevivência que já eu, por exemplo, dou por garantida. Ou talvez não devesse dar.
Maria Fernandes.