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Crónicas

As mulheres que ouviam música pedida

As tardes começavam quando as mulheres se sentavam a bordar no quintal, nos muitos quintais das casas que subiam encosta acima até ao Curral Velho ou desciam até à igreja de Santo António. Depois disso, dessa fronteira, a vida pertencia à cidade e às pessoas que lá viviam e a minha mãe tinha a certeza que não era assim como a nossa, com uma calmaria em que era possível ouvir a música pedida a tocar na telefonia de um vizinho.

Às vezes a música tocava no nosso rádio a pilhas, o único aparelho onde era possível ouvir alguém cantar já que o meu pai era contra pagar o que podia ter de graça. Nunca tivemos discos de vinil, nem gira-discos, houve umas cassetes, mas o leitor começou a comer a fita e ficámos só com o rádio e era esse que se ligava para quebrar o sono.

As minhas tias e a minha mãe acordavam muito cedo para nos manter vivos, vestidos e alimentados e era difícil resistir ao calor morno que inundava o terreiro. E era para espantar aquela moleza das três da tarde que se sintonizava na música pedida na esperança que fosse alegre, mesmo quando chorava amores desencontrados ou saudade.

O gosto podia ser duvidoso, mas ouviam-se os sucessos dos ABBA, o Júlio Iglésias, o Demis Roussos e uns cantores brasileiros de quem não me lembro o nome. Fiquei só com as cantigas como a de um homem que ameaçava matar a namorada se o agarrasse com outro, prometia mandar flores depois e fugir. A música pedida passava tudo e a violência doméstica não era um assunto de que se falasse muito.

As minhas tias e a minha mãe eram pessoas reservadas, criadas num tempo que já não era aquele que estávamos no fim dos anos 70 e princípio dos 80. E viviam segundo um código pelo qual não se falava de sexo, de abuso, de violência, mas não gostavam da música do “se te agarro com outro te mato”. Já adolescente, quando a idade me permitiu entrar um pouco mais no círculo, percebi que se indignavam, diziam que a desgraça começava quando a falta de respeito entrava dentro de casa.

Foi estranho crescer com estas mulheres que seguiam as regras do que ficava bem e do que ficava mal a uma rapariga e, ao mesmo tempo, eram donas delas mesmas, decidiam tudo o que se fazia ou se não fazia em casa, na fazenda e connosco, os filhos e sobrinhos, ao ponto de exasperar o meu tio Humberto e o meu pai. E lembro-me de as ver, todas, no quintal do meu avô, a bordar e a ouvir música pedida, a comentar as cantigas e a dizer que a voz do Marco Paulo era tão bonita, tão boa a cantar aqueles dois amores, a loura e a morena que era muito mais mulher.

Marco Paulo foi a enterrar este sábado e, tal como as mulheres que o ouviam enquanto bordavam no quintal, fez parte de um tempo que passou, daquele Laranjal da minha infância, da música pedida a tocar no rádio em tardes de calmaria.