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Crónicas

Às vezes não se percebe nem a sorte, nem o privilégio

A dona Celina geria as nossas vidas com o rigor de um financeiro quando eu cheguei à adolescência e comecei a trazer para casa pedidos para coisas de que nunca se tinha ouvido falar no Laranjal. As extravagâncias incluíam borrachas que não se pareciam borrachas e tinham aroma de maçã e sapatilhas com nomes estrangeiros que a minha mãe não conseguia pronunciar, nem pagar. As marcas começavam a virar a cabeça dos adolescentes no exacto momento em que a inflação elevava o custo de vida para níveis nunca antes vistos.

Nem lá por cima, nem em lado algum e a minha mãe não via a serventia daquelas marcas se se arranjava tudo por menos de metade do preço, fossem lápis, cadernos, mochilas e umas sapatilhas para a ginástica. E também não percebia as portas a bater, o choro desgarrado em cima da cama como se fosse o maior dos desgostos ficar com os livros usados do meu irmão e ter umas saias com os restos de tecido da alfaiataria do meu tio Humberto. A nossa vida fora assim sempre, como me atrevia a reclamar, eu que tinha 14 anos e a quem pediam apenas que fosse à escola e passasse de ano?

O meu pai não sabia ler e a minha mãe nunca seria professora, mas levantavam-se todos os dias para trabalhar, às vezes todos os dias da semana. Os preços subiam de semana para semana e ninguém baixava os braços. Às quartas-feiras a minha mãe penteava-se e vestia a roupa de sair para levar os bordados à casa e arrastava-me com ela por ser preciso, ela só tinha duas mãos. E eu achava tão injusto atravessar a Rua Bela de São Tiago e passar pelos grupos de rapazes e raparigas do liceu com aqueles embrulhos todos e com a roupa feita em casa.

Via-lhes as calças de ganga, as sapatilhas, as camisolas de lã nos ombros e pensava na minha saia que já tinha sido um vestido, na carteira que a minha mãe levava que viera do armário da minha prima Ana. A nossa figura não era bonita. Uma mulher de meia idade e uma adolescente, as duas carregadas, a descer do autocarro e a fazer o caminho ao calor das três da tarde, a alça do saco de plástico a cortar as mãos. Nós não fazíamos parte do mundo das pessoas elegantes, nem finas como as amigas da minha prima Ana ou as mães das miúdas que se sentavam no intervalo no muro que dava para o campo de futebol dos Ilhéus.

A minha mãe não conduzia, andava de ‘horário’, poupava tudo o que podia. A roupa, o cabeleireiro, o que se comia e o dinheiro que nos dava para o lanche na escola. Os sacos de plástico eram lavados para usar depois e os sapatos tinham de aguentar meias solas e capas antes morrerem de velhos. Lembro-me de a ver a fazer contas por cada jantar e almoço que fazia, que tinha de ser o mínimo possível. A fruta, os ovos, os legumes vinham da fazenda e, muitas vezes, foi isso que nos aguentou.

A adolescente que fui nem sempre percebeu a sorte de crescer com jardim e horta, nem o privilégio de ter um quarto só para si, numa casa grande da qual nunca seríamos despejados. E fui algumas vezes ingrata, fiz drama quando me pediam apenas para ir à escola e passar de ano, que cuidasse do meu futuro. O resto das preocupações ficaram com eles, consumiram tempo, forças e tudo que se põe num propósito de vida. A adolescente acabou por entender como foi privilegiada, apesar de nunca ter tido dinheiro para comprar uma borracha com aroma de maçã.