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Crónicas

O direito a ser turista

A minha mãe tinha medo de aviões e a ideia de entrar num para voar sobre o mar causava-lhe calafrios e dores de barriga. À dona Celina e a quase todas as pessoas do Laranjal, um lugar onde falar de viagens trazia mais saudade do que sonhos. A vida lá por cima era dura e em todas as famílias havia lugares vazios à mesa, histórias de emigração que se aliviava por carta e com fotografias e, mesmo assim, não conseguia preencher a ausência. Não era de admirar a aversão a aviões, navios e a tudo o que lhe fizesse lembrar o dia em que a minha tia Gabriela, o marido e o filho embarcaram para o Brasil.

A memória desse dia ainda pairava nas conversas quando o mundo novo começou a subir da cidade com os amigos dos meus primos, gente de outros hábitos a quem a minha tia Alice abria a sala das visitas e servia bebidas e salgadinhos. Pessoas elegantes para quem o avião servia para ir de férias, assim uma semana sem fazer outra coisa além de passear, tirar fotografias, fazer compras, comer em restaurantes e dormir em hotéis. E fazer vida de turista tal e qual como os que acenavam dos autocarros que passavam no caminho.

A possibilidade de ser turista era tão revolucionária como o impulso que levou a minha tia Teresa e a minha mãe ao salão paroquial para tirar a 4.ª classe de adultos à noite. No fim dos anos 70, havia uma esperança até para as mulheres como elas, à beira dos 40 anos e sem estudos. Antes da revolução ou embarcavam ou ficavam em casa, a bordar; agora podiam trabalhar, ter um ordenado e pagar a excursão da paróquia a Fátima, a Lourdes ou à Terra Santa. E se a minha mãe nunca perdeu o medo aos aviões, a minha tia Conceição descobriu que o que a deixava mesmo feliz era viajar e voltar com a mala cheia de lembranças.

Lembro-me da primeira vez que foi na excursão do padre Rebola, a primeira vez que inverteu o papel, que passou da empregada de quartos de hotel a turista e trouxe do passeio cinzeiros com Nossa Senhora de Fátima, uma boneca de sete saias da Nazaré, t-shirts para o meu irmão e para mim, um rolo de fotografias para revelar e uma esferográfica com barco rabelo a andar para baixo e cima. Também trouxe histórias, das pessoas e das comidas e, apesar de baralhar sempre os nomes das terras, a democratização do ócio e das férias transformou a minha tia.

Esse gosto novo tocou a todos, mas sobretudo a mim, a sobrinha mais nova. Fui com ela nos passeios de autocarro com meia volta à ilha, dos quais guardo memória das vistas, dos chocolates das mercearias, dos gelados, das sandes de salame, das visitas a casa das colegas do hotel. A minha tia levava-me a todos os sítios onde ia e gostava de partilhar aquele entusiasmo, de mostrar como se fazia um lanche para uma excursão ou como se arrumava uma mala para uma viagem de 15 dias no continente. E repetia-me que o avião não dava medo, nem sequer se sentia que se estava no ar, tão alto como as nuvens.

Um dia, quando fosse grande, iria com ela, no avião ver mundo, ficar num hotel, passear e tirar fotografias. O mais longe que fomos foi ao Porto Santo, numa viagem de um dia, que é uma das minhas melhores memórias de infância. Devo-lhe isso e a mala onde arrumei a minha roupa toda quando fui estudar para Lisboa. Também lhe devo o entusiasmo por viajar e todo o carinho que me deu quando levava com ela para todo o lado, num tempo que a minha tia Conceição esqueceu, mas que, para mim, são parte de uma época feliz, em que o mundo iria ser melhor, muito melhor.