DNOTICIAS.PT
Crónicas

Arrumar a Festa dentro do armário

O truque de fazer desaparecer a Festa dentro do armário começou por ser partilhado, mas a minha mãe não tinha paciência para a nossa nostalgia

A minha mãe, a senhora de cabelo grisalho que vivia connosco e mandava nas nossas vidas, regressava a si aos primeiros dias de Janeiro, quando “as coisas da Festa” começavam a cansá-la. Não lhe dava jeito receber as mulheres dos bordados com o presépio a tirar espaço na sala e parecia-lhe esquisito ver o Menino Jesus em cima de uma escadinha, com o trigo grande e na mesa que usava para engomar.

O Natal, de que tanto gostava, parecia-lhe desadequado ao ano novo, à rotina de se levantar às seis da manhã para fazer o almoço ao meu pai e coser os botões que faltavam nas camisas de trabalho, às discussões que isso envolvia. E por isso, num dia sem aviso, a escadinha e o presépio desapareciam da vista, enquanto o pinheiro era atirado para o meio da fazenda e as searas despejadas na terra, a ver se cresciam até dar espigas.

O truque de fazer desaparecer a Festa dentro do armário começou por ser partilhado, mas a minha mãe não tinha paciência para a nossa nostalgia. A tristeza de embrulhar o menino, as palhinhas, os pastores e as ovelhas dentro de uma caixa de sapatos, do esvanecer daqueles dias com a casa arrumada, com cheiro a cera, tangerinas e junquilhos. E broas, bolos e azeitonas no frigorífico. Também a maçava responder às nossas perguntas sobre aquele menino que nunca crescia.

A minha mãe era uma mulher tradicional, católica e temente a Deus e não gostava das impertinências que a faziam questionar a fé. O menino era menino porque era assim mesmo, a Deus nada era impossível: ser filho, pai e Espírito Santo, nascer menino no Natal e morrer pregado na cruz e ressuscitar logo a seguir na Páscoa. E antes de ser obrigada a gritar que “estes pequenos querem me tirar a fé”, passou a tratar dos despojos da Festa sem a nossa colaboração.

Um dia, daqueles do início de Janeiro, no regresso das aulas, dávamos com a nossa casa como era sempre, como o calendário dependurado na cozinha, a mesa do quarto de engomar com roupa para passar e a minha mãe sentada nas cadeiras de vime, virada para a janela, o lugar em que passava as tardes de Inverno. Se tivesse pressa para entregar o trabalho na casa de bordados deixava-me as figuras do presépio para guardar.

E era eu que tinha de encavalitar as caixas dentro do armário branco, esse recanto onde a minha mãe enfiava tudo na esperança de voltar a precisar. Havia jarras, pratos descasados, roupas velhas e “as coisas da Festa”. Eu também sabia que, quando chegasse o Natal, seria complicado encontrar a gambiarra, o papel da rocha e a caixas com os enfeites.

E isso seria suficiente para tirar a minha mãe do sério no Natal seguinte e todas as vezes que fosse procurar qualquer coisa: “está para aí, encantado”. Uma vez tivemos um rádio “encantado”, que deu horas e música, enquanto teve pilhas. Esteve “encantado” como todos os outros objectos que desapareciam no caos que era a casa do Laranjal.