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As obras do criador

Fim da manhã de Domingo. O Sol já vai alto, as nuvens esparsas não o escondem. Por detrás do bar da Encumeada, começo a subir a escadaria da vereda. Uma música serena, com boas botas, uma mochila com água, comida e roupa adicional para qualquer eventualidade. O corpo adapta-se gradualmente ao ritmo da subida, mantenho o passo e sou cercado pelo verde luxuriante da Laurissilva. Pelo chilrear dos pássaros. Pela artesã arte de ladrilhar a vereda. O trilho começa então a contorcer-se e o relevo da serra desabrocha. Sou fulminado com imagens de grande plano, de beleza sem maquiagem.

O vale da Serra de Água abraça o de São Vicente e o maciço do Paul beija a cordilheira central. A seguir, a neblina da Boaventura e do Curral seguem juntas, separadas pela escarpa do trilho até ao Pico Ruivo. Ao longe, o mar e o céu fundem-se, algo que só um ilhéu sabe valorizar. A obra “A Condição de Ilhéu”, coordenada por Nelson Veríssimo e Catarina Duff Burnay, em cima um dos seus cinco capítulos com o feliz título “Com a Ilha às Costas”. Geração após geração, já por seis séculos, carregamos com fundado amor à terra esta beleza intemporal.

Eu e umas dúzias de estrangeiros contemplamos esta volúpia natural. Um discreto arrepio percorre-me ao mesmo tempo que a alma se delicia com o orgulho de ser madeirense. Se precisasse de uma dose de endorfina e dopamina, poderia brotar da sua fonte natural.

Precisamos muito mais destas montanhas tingidas de intenso verde do que estradas, teleféricos, hotéis ou mais obras dentro da serra. Este é o tempo de fazermos as pazes com a Natureza para continuarmos a admirar o que alguns, até com modéstia certamente, chamam o Havaí da Europa.

Precisamos, sim, de abrir as serras à contemplação paradisíaca. Mais sinalização, trilhos muito melhor cuidados, cercas e cordas rasgadas já reparadas, troncos caídos, mas removidos, seriam certamente bem-vindos para que houvesse menos infortúnios e mais aliança com a Natureza.

É imperativo de cada um de nós preservar o legado que os nossos antepassados nos deixaram, no qual, com engenho, suor e lágrimas, criam, cada um na sua época, a melhor simbiose entre natureza, desenvolvimento e tecnologia. A cultura madeirense é suficientemente bela, e os jovens dão agora provas que sabem recriá-la, promovê-la e oferecerem-na com sucesso a quem nos visita.

Hoje é outro Domingo. Continuamos conluiados com a Ilha, mas somos percorridos por sentimentos díspares. As “obras” erigidas pelos homens, irrompem agora como sementes de infortúnio e vergonha nacional. Viver numa ilha deveria dar-nos uma noção dos limites que não devem ser ultrapassados.

O meu sereno afastamento da política permite-me refletir, sem necessariamente procurar culpados ou atores responsáveis pela inesperada erupção política dos últimos dias, até porque, em democracia, a haver culpados, cada um de nós tem “mea-culpa”.

Estou convencido de que não precisamos de obras hereges, ou profanas, para que nos considerem desenvolvidos ou um povo feliz. Não precisamos de outro aeroporto, ou um cais maior, outra marina, ou túneis redundantes e rotundas abundantes. A obra que verdadeiramente precisamos já está em construção, que é o novo hospital. E essa, todos os madeirenses aprovam, de forma inequívoca. Mesmo aqueles que agora foram apanhados na tormenta, a esses ficamos sempre a dever o mérito da sua realização.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” formulava Camões. Saberemos nós, madeirenses de todos os quadrantes políticos, em diferentes esquinas de pensamento, criar as pontes e consensos necessários para fazer as mudanças que verdadeiramente precisamos? E custará menos a cada um de nós se soubermos escolher os percursos certos.