Os jornais guardados no móvel antigo da televisão
Nós tínhamos muitos planos. Eu ia dar a volta ao mundo, o meu irmão seria escritor e tudo isso iria acontecer no futuro, nesse tempo sem fim que se estende à nossa frente quando temos 20 anos
A minha mãe morreu cedo e deixou-me um vazio no coração. Lembro-me de a ver lá, na cama do hospital, cheia de planos para a semana seguinte, para o dia em que o médico lhe desse alta. E lembro-me do telefone tocar, com o meu irmão desorientado, a dizer que tinha morrido. Foi a manhã em que ficámos órfãos.
E ficámos órfãos de várias maneiras. Não a tivemos mais na porta do caminho para nos ver entrar no autocarro, cheia de um orgulho que não conseguia esconder. Ou para guardar, no móvel antigo da televisão, todos os jornais onde apareciam os nossos nomes. Aquele monte de papel de jornal representava muito para a mulher de meia idade, dona de casa e bordadeira, nascida e criada por ali, entre a Rampa e o Jamboto.
A curva de caminho sem história onde viveu, casou e construiu uma casa e uma família, não era um lugar com uma vista bonita, era um sítio como outros, habitado por pessoas como nós, gente de trabalho, que fazia o que podia para ter uma vida melhor, uma casa maior e por dar um futuro aos filhos. As nossas existências faziam-se de detalhes simples, ao ritmo do calendário das festas religiosas, da passagem do Inverno para a Primavera e do Verão para o Outono.
A minha mãe tinha, ainda assim, uma devoção diferente, uma fé nas notícias que ouvia logo de manhã na rádio, mal acordava. Sabia tudo do mundo sem nunca ter entrado num avião. Sabia da Rússia, América e do Porto, o clube de que gostava por razões diversas e por ser azul. A minha mãe dizia que tudo era mais bonito se fosse em azul. No resto era uma senhora de meia idade, grisalha e conservadora, que metia tudo na ordem e me obrigava a estar em casa antes de começar o telejornal.
E embora tivesse sonhado outra vida para nós, com planos que me faziam médica, acabou por se render a ter os filhos jornalistas como os donos das vozes que davam as notícias logo de manhã, pelas seis, quando se levantava a muito custo para fazer o almoço ao meu pai. E encheu-se de um orgulho que nem sempre conseguia expressar. Guardava os jornais, criticava o que achava mal e, mais importante ainda, ouvia os nossos sonhos como só uma mãe consegue.
Nós tínhamos muitos planos. Eu ia dar a volta ao mundo, o meu irmão seria escritor e tudo isso iria acontecer no futuro, nesse tempo sem fim que se estende à nossa frente quando temos 20 anos. A minha mãe não viveu para ver esse futuro, ficámos órfãos numa manhã de sábado, essa que em perdemos a nossa crítica mais feroz, aquela que dizia tudo o que pensava, que nos ouvia e descia os degraus da entrada para nos ver entrar no autocarro, cheia de orgulho.
Quando penso nos 30 anos que me separam deste tempo pergunto-me sempre como seria agora, se teria orgulho no que fizemos e no que somos e continuaria a guardar os jornais onde aparecem os nossos nomes.