Crónicas

É malcriada ou é mal-amada?

Tenhamos consciência de que a forma condicional de educar as crianças é a maior ameaça ao amor próprio e à autoestima

Setembro traz ao inconsciente coletivo a sensação de recomeço. Segundo o dicionário Priberam, ‘recomeço’ significa: “Tornar a começar”. Podemos (e devemos) começar diferente. Parece-me óbvio que todos nós, nalgum momento, já sentimos profunda irritação perante comportamentos (que consideramos desafiantes) de crianças, tal como de adultos. Não nos relacionamos bem com todos os adultos, nem com todas as crianças. É natural. É humano. Porque também é humano irritarmo-nos quando as nossas necessidades são colocadas em causa. E é essa a raiz da irritação que sentimos. Logo, não adianta rotular a criança como ‘irritante’ ou ‘malcriada’. Ao rotularmos, afastamo-nos da compaixão, da capacidade de empatizar, de compreender, de cuidar, perdemos a curiosidade e a possibilidade de descoberta de novas formas de conectar e co solucionar. 

As crianças não estão a desafiar-nos! Ninguém quer portar-se mal. O comportamento menos adequado (que muitos adultos insistem em confundir com a identidade da criança e personalizam) é uma forma de comunicação, é uma expressão de uma necessidade (ou várias) que quer ser vista, acolhida e transcendida. Todos fazemos o melhor que podemos e sabemos, com os recursos aos quais conseguimos aceder, a cada momento. Então, podemos facilmente concluir que uma criança ‘difícil’ está, naturalmente, a viver um momento difícil. 

Uma criança com o rotulo de ‘difícil’ só ganha o titulo porque o seu comportamento é uma dificuldade para os adultos, e claro, fica difícil ser mãe, pai, educador... de uma criança ‘difícil. 

Nesta equação, vejo, demasiadas vezes, o amor a ser usado como moeda de troca. Se a criança se portar bem, recebe amor, se se portar mal é-lhe retirado amor. “Portas-te mal, não gosto de ti!”,  “linda menina, assim gosto de ti!”. São muitos os pais, professores e até profissionais, a quem ouço dizer: “Quando a criança se portar mal, retire algo que ela gosta” ou, “quando se portar bem dê-lheatenção!”, “quando se portar bem elogie e/ou ofereça uma recompensa” ou, “quando se portar mal, ignore-a!”. Será afinal, que esta criança é mesmo ‘difícil’, ‘mal-educada’ ou está a ser ‘mal amada’? Pois...

A neurociência já demonstrou que o cérebro humano atinge a maturidade por volta dos 24 anos. Não é expectável que uma criança tenha a capacidade de autorregular-se, mas é sim, de esperar, que os adultos tenham essa competência desenvolvida e com ela a capacidade de, primeiro, autorregular-se para então, de seguida, co regular a criança. É uma dança, aos pares. Rotular a criança vai influenciar a nossa comunicação connosco e consequentemente, a interação que temos com a criança. É isso que nos revelam as investigações já publicadas. A forma como percepcionamos o outro, e o seu comportamento, como descrevemos ambos, influencia a forma como nos relacionamos com ele. Está comprovado que a forma como comunicamos emocionalmente com as crianças tem um impacto significativo, no seu desenvolvimento, na sua autoestima. 

Nos quatro anos da minha formação em Programação Neurolinguística (PNL), na Universidade da Califórnia Santa Cruz (UCSC), li muita literatura (continuo a ler e a escrever) sobre parentalidade, educação e desenvolvimento humano, desde o pensamento, passando pela conceção, à idade adulta, o impacto da herança transgeracional, trauma... Dos inúmeros livros (e professores de referência mundial na área) que me tocaram profundamente, destaco aqui o ‘Meta-Emotion: How families communicate Emotionally’, de John M. Gottman, Lynn F. Katz & Carol Hooven. Não me vou estender na descrição da obra, apenas enquadrar, referindo que o conceito de meta emoção parental, refere-se às emoções dos pais sobre as suas próprias emoções e as emoções dos seus filhos. A conclusão dos estudos destes autores é a de que a comunicação emocional empática entre pais e filhos está diretamente ligada ao desenvolvimento emocional e social saudável das crianças.

E há um princípio da parentalidade generativa que norteia a minha vida e que partilho nos meus livros: ‘não é o que nos acontece na vida, é a forma como agimos perante o que nos acontece.’ Por isso, é fácil perceber que o mais desafiante na parentalidade e na educação, não é o comportamento da criança. O mais difícil é gerir a nossa meta emoção, que, por sua vez, gera a nossa reação perante o comportamento da criança. Exige a disciplina de fazermos o nosso TPC: a auto-regulação. Portanto, primeiro conectamo-nos com as nossas intenções, depois, a partir de um lugar de presença e amor incondicional, utilizando uma comunicação consciente e empática, criamos um porto seguro, um ambiente emocional saudável e nutrimos a relação. 

Ameaças, castigos, violência física e verbal, técnicas de gestão e controlo de comportamentos, quadros de recompensas, subornos, recompensas, julgamentos… São mensagens que comunicam à criança “tu não mereces amor exatamente como és”. E uma criança ‘mal-amada’, não deixa de gostar dos pais, deixa de gostar de si própria.

Venha daí o novo ano letivo!