Interesses poderosos e tíbios princípios
É verdade que o voto (secreto) é um dos símbolos máximos da democracia, que pode alterar o rumo de uma Região/país
1. Agosto já lá vai – e com ele as grandes festas/arraiais que atraem emigrantes, residentes e turistas a quase todas as localidades/freguesias e que animam (e enriquecem) a ilha da Madeira (mas também o país, principalmente o interior) – e o mês de Setembro (“mês dos regressos” e das rentrées políticas) reservou-nos, neste particular ano de 2023, mais um ato eleitoral que decidiu (para já) quem serão os representantes dos cidadãos (a que muitos chamam “povo”) na Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para o próximo quadriénio.
Como já se percebe, pouco ou nada mudará depois do dia 24 de setembro e os principais protagonistas da política regional serão, com uma ou outra exceção, justamente os mesmos. Económica e socialmente, as elites continuarão a florescer e o cidadão-contribuinte e consumidor terá de aprender a viver cada vez mais pobre, isto é, a empobrecer.
É verdade que o voto (secreto) é um dos símbolos máximos da democracia, que pode alterar o rumo de uma Região/país, que pode demitir e substituir aqueles que nos representam (ou governam) mal, na medida em que permite ao cidadão livre expressar as suas convicções e eleger quem lhe parece mais bem preparado e mensageiro do melhor projeto para o futuro. Porém, a prática dos últimos anos (e atual mês) demonstra que não é bem assim. Analisando o passado e presente, quase tudo ficará igual: o poder político será entregue a quem hoje já governa, não haverá generosas mudanças – como alguns apregoaram e declararam querer implementar – e muitos dos jovens filhos desta terra vão ter de continuar a sair para poderem estudar ou melhorar as suas condições de vida, em especial, a sua situação remuneratória, uma vez que a maioria das empresas – e o próprio Estado – apostaram (e desenvolvem) numa estrutura de custos assente em salários baixos e, para piorar a situação, numa pesada carga fiscal.
Para infelicidade coletiva, a esmagadora maioria dos cidadãos não se interessa pela atividade política e não está devidamente instruída sobre os poderosos (e díspares) interesses que estão por detrás dos partidos políticos e dos seus dirigentes/agentes, assim como os programas eleitorais. Consomem imoderadamente conteúdos audiovisuais de exígua qualidade – com narrativas preguiçosas e muitas vezes inexatas, para não dizer manipuladas – e deixam-se levar por todo o género de propaganda não verificada (fake news, mentiras, burlas…) que é espalhada nas redes sociais. Como resultado, são enganados e iludidos por promessas e compromissos que acabam muitos deles em gavetas fechadas no dia a seguir ao voto, ou seja, ideias que passam a ser uma mera lembrança de uma qualquer dádiva política pública que nunca será cumprida e que deixou para um amanhã incógnito a resolução de um qualquer (essencial) problema ou questão. Se antes da eleição a solução para aquele problema era uma “prioridade”, depois do sufrágio passa a mais uma simples proposta que fica em análise até que alguém se lembre dela. Num documento recente que acabo de ler e onde são colocadas algumas questões aos partidos proponentes ao ato eleitoral deste mês, surgem, a este propósito, algumas expressões caricatas como: “iremos ponderar essa possibilidade” e é “matéria/medida a ser analisada na próxima legislatura”. Ora, assim se esclarecem os potenciais eleitores sobre como minorar ou resolver dificuldades do seu quotidiano e se exprime, quase na plenitude, que a política também é uma comédia e há que representá-la hábil e talentosamente. Sugiro a alguns dos líderes partidários regionais a leitura de uma obra clássica (Tratado) sobre estas matérias de política e governança, Conselhos aos políticos para bem governar, da autoria de Plutarco, um pensador da antiguidade que considera que os homens de Estado devem submeter-se à soberania da lei, mas também da razão.
2. Dizemos, muitas vezes, que a atividade política pretende criar um Governo – e instituições – capaz de assegurar uma vida feliz aos cidadãos. Contudo, esta realização vive e alimenta-se de um duro e real jogo de poder (forças) onde grandes e fortes interesses financeiros, económicos, sociais, geoestratégicos, profissionais, políticos, culturais, urbanísticos, imobiliários, religiosos… e agora também ambientais, assumem um protagonismo (e domínio) que é difícil de apreender e, sobretudo, moderar e demarcar. Na Região eles estão bem atentos e em ação para que depois do dia 24 de setembro, e aplicada a dialética do dar-receber, quem chegar ao poder, concretize um conjunto de objetivos e projetos que foram previamente traçados. Lembro que estes (grupos de) interesses são orientações ou disposições bem estáveis e organizadas na nossa sociedade (muitas vezes conhecidas organizações e/ou associações… não esquecendo os poderosos grupos económicos) que procuram ter relevante peso junto das principais instituições políticas e influenciar a chamada “arena” parlamentar e governamental. Como dissemos acima, a finalidade destes vigorosos e resistentes interesses é instrumental e utilitária, ou seja, eles visam pressionar e controlar os decisores públicos e políticos relativamente a uma qualquer decisão ou resultado de uma medida política que afeta direta (ou indiretamente) as preferências, projetos e/ou negócios da sua organização. Para quem ainda se lembra da célebre frase do Prémio Nobel de Economia (1976) e professor na Universidade de Chicago durante mais de 30 anos, Milton Friedman (1912-2006), na política também “não há almoços grátis”, isto é, nada é de graça e tudo se paga, nem que seja a médio ou longo prazo e, tal como no mundo dos negócios, ninguém anda na política “descuidada e desinteressadamente”. Dizia o ex-Primeiro ministro Francisco Sá Carneiro, “em política, o que parece é”.
3. Escutamos, reiteradamente, da boca dos nossos responsáveis políticos que “em política não vale tudo” ou “não pode valer tudo”. Na prática, este discurso de intenções quer dizer que em circunstância alguma podemos ceder nos princípios ou nos valores que a democracia erigiu e que estes devem ser diariamente empregues, defendidos e preservados (princípios como a honestidade/seriedade, equidade, imparcialidade, responsabilidade, solidariedade, liberdade, justiça, boa governação e dedicação ao Bem Comum). Contudo, nos últimos tempos, a práxis política (e o modelo de debate) empregue pelos nossos principais atores contradiz esta mesma elocução e originou um clima de desconfiança (e descrédito) nas instituições do Estado de direito democrático e nos eleitos. Para além da captura do poder político por poderosos interesses, a nova retórica demagógica e populista, assim como muitos dos sucessivos escândalos/casos de corrupção na política nacional, regional e local – desde situações de suborno, troca de vantagens indevidas, prevaricação, abuso de poder, branqueamento de capitais, fraude fiscal, entre outros –, a que agora se pode adicionar os “almoços de trabalho” milionários (e despesistas) de alguns autarcas, demonstram que para alguns titulares de cargos públicos alguns princípios/valores pouco ou nada simbolizam. Lamentavelmente, muitos dos que exercem relevantes cargos políticos e públicos ainda não entenderam que devem adotar (e exteriorizar) uma conduta especial de cuidado, isto é, princípios, comportamentos e uma integridade apropriada ao lugar que ocupam, em suma, uma retidão acrescida. Para além da autoridade democrática de possuem, a defesa e a prática de certos princípios morais é igualmente crucial para que os portugueses continuem a acreditar e a confiar naqueles/as que os governam.