Música clássica: prazer, ferramenta ou arma?
Quem visita Japão, vai notar logo a presença da música, sobretudo música clássica ocidental, em espaços públicos. Música suave de fundo não é uma novidade e foi utilizada já há largos anos para acalmar ansiedades e encorajar consumerismo nas lojas e nos restaurantes. No contexto da sociedade japonesa, a música clássica tem propriedades éticas e promove comportamento civilizado.
A questão da erudição cultural e da classe económica é muitas vezes considerada uma das determinantes da reação à música clássica. E enquanto essas associações são geralmente positivas na sociedade japonesa, no Ocidente elas estão a assumir interpretação negativa – quantas vezes nos foi dito que a música clássica é elitista e racista e existe para os ricos e velhos brancos? Numa inversão, na cultura em que efetivamente nasceu a música clássica, a mesma já não é vista como força do moral positivo, mas, frequentemente, torna-se uma arma para desencorajar elementos indesejáveis da sociedade.
Essa história começou aparentemente em 1985, quando uma loja da cadeia internacional 7-Eleven (lojas de conveniência que vendem comida, bebida e combustíveis, entre outras coisas) na Colúmbia Britânica começou a tocar música clássica em alto volume no parque de estacionamento, para afugentar os adolescentes que ali se juntavam durante horas sem fim. O êxito foi tal que a estratégia foi desde já implementada em 150 lojas da cadeia.
Esta “metodologia” foi a seguir implementada por várias cidades, departamentos de polícia e locais públicos nos Estados Unidos, no Canadá e em Londres. Nesta cidade, a música clássica foi tocada nas estações de metro para atenuar comportamentos antissociais e transgressivos. Em 2003, isso resultou numa diminuição de 33% de assaltos, 37% de vandalismo e 25% de assaltos verbais aos funcionários. Em Los Angeles, as autoridades indicaram que as chamadas de emergência foram reduzidas em 75%, o vandalismo e grafite em 50% e o crime em 20%.
A música utilizada para este fim data, geralmente, do período barroco ou clássico (Vivaldi ou Mozart, por exemplo) e o consenso é de que há algo na música barroca que “os machos que aspiram ser delinquentes odeiam”.
Sempre nos ensinaram que a música, particularmente a clássica, representa uma força inimpugnável de empatia, que fala a todos e que nos faz relacionar com outros humanos através do tempo e espaço.
Mas os prisioneiros de Guantánamo iriam discordar, depois de terem sido expostos durante anos aos tipos de música particularmente ofensivos para a sua cultura, religião e sensibilidade. Neste caso, a CIA incorporou a música popular nas rotinas de tortura. No caso dos jovens, as conotações da associação da música clássica a um estereótipo socioeconómico e racial, tornam o som numa espécie de parede, alienando aqueles que não se identificam com este estereótipo. Deste modo, e em consequência do desconhecimento ou ignorância do mérito da própria música, reforça-se a sua reputação enquanto fortaleza elitista.
No fundo, a música não tem um valor intrínseco. Esse valor está sempre no olhar do observador e depende da maneira como está a ser usada. Mas tal como pode ser utilizada para sarar, dar conforto, proporcionar a fuga emocional ou momentos de transcendência, ela pode também ser utilizada como arma.
Os “sucessos” acima referidos esbarram contra o facto de que não existem estudos publicados que abordem este fenómeno. A teoria prevalente é que a resposta neurobiológica aos estímulos desagradáveis ou estranhos resulta num reduzido nível de dopamina (neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa), o que acaba por estragar o humor da pessoa e fá-la evitar a experiência.
Finalmente, os críticos desta “metodologia” indicam que ela não trata do problema das congregações de jovens sem nada a fazer e dos gangs, apenas o transfere para um outro lugar. Efetivamente, tocar música clássica para esvaziar espaços públicos deve ser um ato de supremo elitismo: uma tentativa de “civilizar” o espaço tornando-o desagradável para as pessoas cujos gostos são diferentes.
Houve até um inventor galês, Howard Stapleton, que, em 2006, recebeu o Prémio Ig Nobel de Paz (uma paródia dos prémios Nobel) por ter inventado um verdadeiro repelente eletromecânico de adolescentes – uma engenhoca que produz sons desagradáveis e tão agudos que só os jovens os conseguem ouvir. No entanto, a seguir usou a mesma tecnologia para produzir toques de telefone que só os jovens conseguiam ouvir – mas provavelmente não os seus pais nem os seus professores! Enfim…