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Crónicas

E tudo por causa da democracia

O meu pai era um desses homens que, ainda antes do sol nascer, estava a caminho de uma obra com o almoço dentro de uma pasta

A política mudou-nos a vida. Não foi a política dos partidos, a aquela que subia a encosta em carros com música e altifalantes e deixava um rasto colorido de papéis de propaganda. Todos os miúdos tinham uma colecção de esferográficas, lápis com a tabuada e demais bugiganga, que, à época, tinha o valor de um tesouro.

A primeira vez que vi um autocolante foi numa campanha eleitoral, as novidades demoravam sempre a chegar ao Laranjal e foi cá um espanto ver um papel que também era um adesivo. E, embora, toda esta tralha tivesse uso para brincar ou levar para a escola, não foi essa a política que nos mudou a vida.

Foi a outra, a que a revolução trouxe até ali, uma curva de caminho sem muita história ou característica, mais ou menos com todas as curvas e caminhos, onde os homens se levantavam todos os dias para ir trabalhar. As mulheres ficavam em casa a cuidar dos filhos e, à tarde, sentavam-se a bordar. E nós brincávamos pela fazenda adentro ou onde calhasse, sem outros brinquedos a não ser a imaginação.

O meu pai era um desses homens que, ainda antes do sol nascer, estava a caminho de uma obra com o almoço dentro de uma pasta. E a minha mãe era mais uma daquelas mulheres que se sentavam a bordar depois do almoço com o rádio ligado nas notícias. As notícias eram a inspiração, o lugar onde ia buscar todas as ideias, onde ficava a saber tudo. Também lhe traziam alguma angústia, sobretudo quando o país ficou à beira da falência.

E foi pelas notícias que a minha mãe passou a seguir a política com o mesmo interesse com que ouvia a radionovela. Passou a saber tudo sobre os partidos, os líderes dos partidos, o que era o governo daqui e o que era o governo de lá. E sabia o que defendiam, sabia até o que se passava na América e na Rússia sem nunca ter ido além da Ponta de São Lourenço.

Foi pela rádio que descobriu os direitos de ir à escola, de ter médico, do passe social e que encontrou os argumentos quando esbarrava na resistência que esse novo mundo encontrava naquela curva de caminho onde acordávamos todos os dias. A minha mãe convenceu o meu pai a inscrever-se na segurança social e fez a minha tia Alice descontar para a caixa.

E já depois dos 40 anos – num tempo em que isso significava ser velho – decidiu tirar a quarta classe de adultos e arrastou a minha tia Teresa, preocupava-a não ter a escolaridade para o caso de ser preciso arranjar um emprego. O que era ainda mais importante para a minha tia, solteira e sem filhos.

Todas as ideias que teve, enquanto ouvia rádio – e nos maçava – vieram dos debates, dos programas, até das discursos e das discussões no parlamento. A política era isso, ter direitos e saber usá-los. A minha mãe recorreu a todos, ia onde fosse preciso ir, não lhe dava medo, nem sentia vergonha entrar numa repartição e perguntar como se fazia.

Não se dava por vencida, um direito era um direito e era para todos. Para as pessoas da cidade e para as pessoas como ela, que vivia lá em cima e não carregava um nome sonante. Se as portas não se abriam, então era preciso rodar a maçaneta para entrar. A democracia era isso e por isso votava, quase sempre depois de ir à missa.

A minha mãe morreu aos 59 anos, foi-se antes de ser consagrada a reforma antecipada para as bordadeiras de casa, mas deixou uma pensão de viuvez ao meu pai e garantiu a reforma à minha tia Alice. E a minha tia Teresa encontrou emprego numa escola. E tudo por causa do 25 de Abril e da política.