O início do fim da abstenção
Negar a nossa responsabilidade pessoal é negar a nossa existência, é negar a nossa liberdade de pensamento e de expressão, é ‘entregar o ouro aos bandidos’
“A melhor razão para dizer o que pensamos e o que sentimos não é porque o outro vai entender e mudar de ideias como desejamos. A melhor razão para dizer o que pensamos e o que sentimos é porque é nesse lugar que queremos estar e porque precisamos de ouvir o som da nossa própria voz a dizer o que sabemos ser verdade.” A citacão é da psicóloga clínica Harriet Lerner. Pergunto-me então, como seria se comunicássemos todos assim?! Com os nossos filhos, com os nossos companheiros, com toda a gente?
Tenho pensado muito nesta questão, sobretudo na última semana e meia, porque noto, em particular, junto daqueles a quem procuro entrevistar para as reportagens que faço, na cobertura da campanha eleitoral para as eleições legislativas regionais na Madeira, que ainda há muitas pessoas com dificuldade, com receio de dizer o que pensam e sentem ou então, que não sabem como fazê-lo. Parece-me que muitas destas pessoas (diria mesmo, a maioria) acreditam não poder dizer a sua verdade. E observo, pelas conversas que se desenrolam, que quase todas aprenderam na infância que é perigoso verbalizar a sua verdade. E com isso, aprenderam também, que não valia a pena porque não mudava nada e ainda eram castigadas, mal amadas, não vistas, não reconhecidas. Que eram excluídas do grupo. E portanto, desenvolveram comportamentos adaptativos para lidar com a situação, que é como quem diz, com a desregulação alheia quando escuta uma verdade diferente da sua. Comportamentos que prolongados no tempo se tornaram hábitos e instalaram a crença de que não é preciso falar sobre a verdade. Diz-lhes a experiência pessoal que fazê-lo é acordar discórdias e dor. E é assim que deixam de ser quem são, para caberem na imensidão de pessoas desconectadas de si próprias, das suas vontades, desejos e ambições, entregues aos mandos e desmandos alheios, dando, de mão beijada, o comando das suas vidas aos demais, na esperança de terem um lugar que por natureza é seu, mas já se esqueceram ou nunca souberam. Aflige-me.
E tudo isto lembra-me que o mundo em que vivemos, (ainda) assenta em grande parte, numa educação autoritária, numa cultura de obediência, sem reconhecer que crianças e adultos têm igual dignidade, desejos, emoções, opiniões e necessidades. Esta forma intolerante de (des)educar continua sem querer ver que as criança só obedecem por medo das represálias, não por respeito ou por sentirem ser parte do sistema. Os adultos também. Até porque, as crianças de hoje, são líderes de amanhã que crescem sem saber que são únicas, que merecem, que pertencem, que têm voz, que podem e devem questionar, que é possível dar as mãos na co-criação colectiva de soluções em prol do todo. Crianças, futuros adultos que não percebem que podem e têm a responsabilidade pessoal de agir.
Todo este processo é comandado pela neurocepção. O termo é cunhado pelo neurocientista e psiquiatra Dr. Stephen Porges - e significa a função inconsciente que todos temos para detectar pistas de segurança ou perigo do ambiente externo (e interno) e, em seguida, mudar para estados defensivos ou de segurança do sistema nervoso autónomo. O corpo está constantemente a ‘scanear’ o ambiente, à procura de sinais de perigo ou de segurança. As informações externas do ambiente são então, filtradas pelos sentidos sendo em seguida direcionadas para partes primitivas do tronco cerebral, longe da nossa percepção consciente. Ou seja, a neurocepção não tem nada a ver com escolha. Tem tudo a ver com respostas neurobiológicas à segurança ou ao perigo. Essas respostas estão codificadas no nosso ADN, herdadas das gerações anteriores que sobreviveram o suficiente para transmitir aquilo que as ajudou a sobreviver. E é por isso que quanto mais cedo criarmos espaços seguros para escutarmos a liberdade de expressão, emoções e sentimentos das nossas crianças, em igual dignidade e valor, mais garantia temos de respeito e democracia futuros. Isso, e a certeza de que deixa de haver espaço para abstenções. Caso contrário, corremos o risco de ver a história repetir-se. Hannah Arendt retrata muito bem este caminho destrutivo no seu livro ‘Eichmann em Jerusalém’. Em 1960, Adolf Eichmann, nazi responsável por traçar a chamada ‘solução final’, foi julgado pelo Tribunal de Nuremberga. A grande surpresa aconteceu quando Eichmann, conhecido pelo ‘monstro sanguinário’, responsável pelo genocídio de milhares de judeus, é julgado como sendo apenas um funcionário do Estado, um burocrata que cumpria ordens superiores. Arendt fala-nos daquilo a que chama a “banalidade do mal”, descrevendo a capacidade do Estado de igualar o exercício da violência homicida ao mero cumprimento da actividade burocrática.
mal”!
Pois bem, eu escolho manter a minha crença, suportada pela neurolinguística e pela neurociência: vale sempre a pena verbalizarmos, escrevermos, gesticularmos a nossa verdade!! Em todas as frentes! Em casa, na rua, nas urnas. Em consciência. Sempre!