Fact Check Madeira

Os profissionais de saúde podem ficar isentos de qualquer responsabilidade?

Conselho Médico da Ordem dos Médicos da Madeira diz ter recebido declarações de escusa de responsabilidade por parte de médicos do SESARAM

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Foto arquivo

A questão é colocada na sequência do ataque informático ao Serviço Regional de Saúde, registado a 6 de Agosto de 2023, nomeadamente pelos “acidentes ou incidentes que possam verificar-se em resultado de falha de meios informáticos de registo médico”

A Ordem dos Médicos da Madeira manifestou hoje preocupação com o impacto do ataque informático ao Serviço Regional de Saúde (SESARAM), no domingo, na actividade clínica prestada aos utentes, indicando que tem recebido declarações de escusa de responsabilidade.

Médicos pedem escusa de responsabilidade por eventuais acidentes ou incidentes resultantes de ataque informático

Impossibilidade de consultar registos médicos anteriores e registar os dados da consulta poderá condicionar negativamente cuidados prestados, alerta o Conselho Médico da Ordem dos Médicos da RAM

A questão da escusa de responsabilidade não é nova. Em 2020, por exemplo, foram apresentados vários pedidos decorrentes da prática de actos médicos no âmbito da medicina geral e familiar, onde se referia o excesso de tarefas atribuídas ou o acompanhamento inadequado dos utentes com patologias devido à situação pandémica.

O mesmo tem acontecido ao longo dos últimos dois anos com enfermeiros, médicos internos de ginecologia e de obstetrícia em todo o país e ainda com alguns profissionais da área da oncologia, que alegam não terem as condições necessárias no trabalho ou não verem as suas condições de segurança garantidas.

Enfermeiros apresentaram 7.656 escusas de responsabilidade no último ano

A Ordem dos Enfermeiros (OE) recebeu no último ano 7.656 pedidos de escusa de responsabilidade de enfermeiros, por considerarem que está em causa a qualidade e segurança dos cuidados prestados por falta de profissionais, foi hoje anunciado.

Mas o que diz a lei sobre estes pedidos? Os profissionais de saúde podem isentar-se de qualquer tipo de responsabilidade? A DECO clarifica esta questão.

O que é o pedido de escusa de responsabilidade?

É um pedido unilateral efectuado por um profissional de uma determinada área (por exemplo, médicos, enfermeiros ou bombeiros), em que este invoca a exclusão de responsabilidade, com base num determinado motivo, como a falta de recursos humanos, a escassez de equipamentos ou outros factores que possam comprometer o exercício da respetiva profissão.

O pedido de escusa de responsabilidade deve mencionar:

·         a identificação do profissional;

·         o local de trabalho;

·         a identificação dos constrangimentos;

·         os riscos ou a repercussão que os constrangimentos podem causar aos utentes.

Que tipos de responsabilidade podem ser atribuídos aos profissionais?

Existem três tipos de responsabilidade: a disciplinar, a civil e a criminal.

No sector público, a responsabilidade disciplinar resulta da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, em que todos os trabalhadores são disciplinarmente responsáveis perante os seus superiores hierárquicos. Contudo, a lei prevê a exclusão da responsabilidade disciplinar do trabalhador que actue no cumprimento de ordens de um superior hierárquico, quando antes tenha pedido a transmissão ou a confirmação das mesmas por escrito.

A responsabilidade civil e a responsabilidade criminal dependem dos actos praticados pelo profissional. Por exemplo, a responsabilidade civil será avaliada em função da prova apresentada, pois a mesma é essencial para declarar se o profissional é ou não responsável, ou seja, se houve ou não violação da chamada leges artis (leis da arte).

Quais os efeitos da escusa de responsabilidade?

Há quem considere que a declaração relativa ao pedido de escusa de responsabilidade assume maior relevância no plano disciplinar e menor no plano civil ou criminal, pois a declaração isolada não retira a responsabilidade dos profissionais nestes dois últimos, uma vez que deve ser provada.

Conforme explicou Eurico Castro Alves, citado pela TSF nacional, as declarações de escusa de responsabilidade de médicos e enfermeiros não libertam as responsabilidades dos profissionais de saúde em caso de erro médico.

A figura de escusa de responsabilidade está prevista na lei, mas só se aplica nos casos em que o doente é prejudicado por má organização dos serviços  Eurico Castro Alves, ex-vogal da Entidade Reguladora da Saúde e antigo secretário de Estado da Saúde

Segundo a DECO, “não se trata de uma situação linear, pelo que devem ser provados todos os condicionalismos invocados pelo profissional”.

Veja-se o exemplo de um profissional de saúde recorre à escusa de responsabilidade e nega qualquer tipo de responsabilidade por actos praticados num determinado período, por exemplo, devido a falta de recursos. Se ocorrer um erro e se estiver em causa a responsabilidade do profissional, será necessário provar em tribunal que, na altura em que ocorreu o erro, não existiam os recursos em causa. Caso contrário, o profissional pode ser condenado, mesmo com um pedido de escusa.

Para que serve o pedido de escusa de responsabilidade?

Há quem entenda que este mecanismo serve como forma de pressão ou de protesto, por exemplo, quanto ao mau funcionamento de um serviço. Isto pode levar, no limite, à condenação do hospital.

Em declarações à Lusa, em Junho de 2022, o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considerou que o número avultado destes pedidos simboliza “um grito de alerta, uma chamada de atenção para estas situações, que se enquadra perfeitamente naquilo que é o estatuto da Ordem dos Médicos: o dever que temos de proteger os nossos doentes”, disse.

Miguel Guimarães reiterou ainda, na altura, que o facto de o médico pedir escusa de responsabilidade não quer dizer que deixa de ser responsável, ou que vai deixar de fazer aquilo que é o seu serviço.

Os direitos dos utentes podem ficar comprometidos?

Mesmo que um profissional apresente um pedido de escusa de responsabilidade, os direitos dos utentes mantêm-se inalterados. O Estado continua a ser responsável perante os utentes e, em caso de erro, mantém-se o direito de indemnização.

Com efeito, o Conselho Médico da Ordem dos Médicos da Madeira assegurou, no comunicado remetido às redacções que, apesar das preocupações com as limitações impostas pelo ataque informático, os profissionais estarão "atentos permanentemente à evolução da situação" e "os utentes estão e estarão sempre no primeiro plano de actuação dos médicos".

"Sendo que as decisões individualizadas, para cada utente, serão tomadas a cada momento de acordo com as melhores práticas clínicas e de forma a minimizar esta situação vivida", acrescentou a entidade.

Neste momento, os profissionais do SESARAM não conseguem aceder à plataforma informática ATRIUM, na qual são efectuados os registos administrativos e clínicos dos utentes nas diferentes áreas de actuação (consulta, internamento, bloco, serviço de urgência, entre outros), recorda o Conselho Médico da Ordem dos Médicos da Madeira.

Na terça-feira, o SESARAM informou que o serviço estava a funcionar, embora mantendo ainda "limitações na realização de algumas consultas, na realização de exames e análises clínicas não urgentes".

Na segunda-feira, o Serviço de Cibersegurança do Governo Regional adiantou que o tempo de recuperação do ciberataque ao Sesaram, sinalizado às 08:11 de domingo e que provocou uma "disfunção na rede informática", será prolongado e apelou aos utentes para tomarem cuidados redobrados no acesso à informação.

"Não conseguimos, nesta fase, dar um prazo expectável, mas não é algo que se resolva num dia", disse Nuno Perry, do Serviço de Cibersegurança do executivo madeirense.

A escusa de responsabilidade é um mecanismo ao qual podem recorrer médicos ou enfermeiros, entre outros profissionais. Não obstante, só há afastamento ou exclusão de qualquer responsabilidade – mesmo apresentando um pedido de escusa – caso o profissional de consiga provar que agia no decurso de ordens dadas por um superior hierárquico. Estas ordens têm de ser dadas e/ou confirmadas por escrito.