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O vício da felicidade e a fuga de nós mesmos

O nosso cérebro evoluiu e adaptou-se em tempos de escassez através da dialética entre prazer e sofrimento. Como num baloiço, a sensação de desconforto impeliu-nos a procurar recursos fundamentais à sobrevivência, como comida, água e sexo, e à consequente sensação de prazer (libertação de neurotransmissores como a dopamina); em analogia com as leis da física, o baloiço movimenta-se depois para o lado contrário, para uma zona de desconforto, que nos motiva novamente para a recompensa, e este ciclo possibilitou a sobrevivência.

Daqui decorre que, se “carregamos” demasiado no prazer, fugindo à dor, aumenta a sua necessidade e tolerância, e o balanço para o lado do desconforto será maior. No limite, procuraremos prazeres imediatos apenas para não haver dor/vazio, e nos sentirmos “normais” naquele momento. O processo inverso também acontece, e como exemplo temos a procura do sofrimento através de atividade física intensa, de experiências “radicais” ou de banhos gelados, que induzem à posteriori a libertação dopaminérgica, ciclo que, a partir de demasiada medida, também pode ser problemático.

Neste yin e yang navega o nosso equilíbrio mental, agora desafiado pela dimensão da arquitetura social consumista e de abundância da nossa era, que abomina o aborrecimento e está projetada para a mercantilização narcisista e infantil da felicidade, do prazer imediato, e hiperestimulação tecnológica. Quase todos nós, como reflexo, estendemos a mão para fazermos “scroll” numa “app” quando ligeiramente aborrecidos. Quando stressados e ansiosos, apetece-nos entrar numa loja e comprar algo, aproveitarmos a promoção online ou expormo-nos como objetos de consumo para validação através das redes sociais. Chamo-os de “prazeres de absorção rápida”, que em exagero podem desequilibrar-nos rapidamente para a sensação de ansiedade, insatisfação/vazio, desejo de nova gratificação, e assim sucessivamente.

O evitamento do desconforto e a fuga de nós mesmos pode diminuir a tolerância à frustração e dificultar o lidar com emoções negativas, resultando em problemas de regulação e vazio emocional, ansiedade e depressão, privando-nos de oportunidades de crescimento pessoal e autodescoberta. Refiro frequentemente aos meus pacientes que terão de inevitavelmente encarar e atravessar pensamentos, conflitos e emoções difíceis e adiadas, tomar consciência de padrões de funcionamento, como parte do seu processo terapêutico e de reorganização psicológica, tal como quem tem fobia de andar de avião terá de se expor, tolerar o desconforto e impulso de fuga como forma de superá-la e, quiçá, “sentir-se bem” depois.

Todos procuramos o nosso caminho e, parte da resposta, nunca definitiva, poderá passar pelo exercício de um esforço deliberado para, num fogo cerrado de estímulos e de apelos à gratificação rápida, sermos equilibrados no consumo dos mesmos, capazes de abraçar e tolerar o que por vezes é desconfortável e estarmos mais connosco, abrindo portas para o autoconhecimento e autoaceitação, priorizar relacionamentos e ligações pessoais genuínas, discernir quais são os nossos valores e partir daí fazer escolhas e sacrifícios alinhados com o que realmente importa, descobrindo os nossos “prazeres de libertação longa”. Faça este exercício: na festa do seu 90.º aniversário, o que gostaria que as pessoas dissessem de si e de como foi a sua vida?