Crónicas

O sabor a aventura

O Lido era o banho, sol, o bronzeado intenso e aquela sensação de liberdade

Uma parte da minha adolescência, talvez a mais feliz e despreocupada, resume-se naqueles dias no Lido, a correr pelos ladrilhos vermelhos ou nos mergulhos, a cair de pé na água e a sentir que o estômago chegava à boca. E quase que sinto, como se fosse hoje, o waffle com creme de chantily a queimar o céu da boca, que todos tínhamos fome e pouca paciência para esperar mais do que o tempo que era preciso estar na fila à espera de vez no balcão do restaurante.

O Lido não era um complexo balnear e é vagamente parecido com o que existe agora, depois das obras e todas as normas de segurança que são necessárias para abrir um espaço ao público. Isso é agora, nos anos 80 a vida era como era, assim mais a olho, dependia de uma boa dose de sorte e de muita estratégia para voltar a jogo no dia a seguir e no dia depois desse. E havia azares e acidentes terríveis, miúdos que abriam a cabeça por contar mal as ondas quando o mar estava de levadia.

A maioria de nós sobreviveu e não foi por ser bem comportado, nem sequer por ter medo. Foi sorte e foi sorte ainda maior ter aquele pedaço de rochas e cimento para explorar, aquele lugar que era na verdade um resort aberto a todos, com restaurantes, piscinas, plataformas e pranchas, cheio de recantos onde se podia namorar e dar beijos às escondidas ou ficar estendido a ler um livro. Ou descer pelo tobogan ou tentar nadar até ao ilhéu.

O resort tinha defeitos. A água dos duches era fria, tão fria que dava a impressão que chegava aos ossos. Ao fim do dia, depois de horas e horas a amolecer ao sol, era preciso respirar fundo para meter a cabeça na água e lavar com champô. E havia os ladrilhos que aqueciam muito e exigiam uma ginástica para não escaldar as plantas dos pés. Sim, ninguém usava chinelos.

Nos dias de bandeira vermelha e mar agitado lá se arranjava maneira de fintar a levadia e surfar as ondas que entravam pela piscina adentro. Ou se apanhava a onda dentro da piscina ou fora, o que não tinha graça era ver a água a levar a bolsa, a toalha e o lanche de sandes de queijo derretido ao sol. O importante era acabar o dia inteiro, sem mazelas que se vissem para poder voltar no dia seguinte e em todos os outros em que houvesse dinheiro para pagar a entrada de menores de 17 anos.

O Lido era o banho, sol, o bronzeado intenso e aquela sensação de liberdade. Ali, depois de passar a porta, não havia pai, mãe ou uma tia a vigiar cada passo, cada gesto, a dizer se podíamos rir ou se a gargalhada era alta demais. Entre o mar e o mundo que ficava atrás de mim podia ser eu mesma, a adolescente a ganhar confiança. Penso muitas vezes que a pessoa que sou é tanto do Laranjal como é desse Lido que já não existe e que até me custa a perceber como era.

O que havia era grande, com espaço para famílias, crianças pequenas, adolescentes como eu e universitários a jogar às cartas. E era tão bom para se desejar passar lá as férias inteiras, para se querer comer todos os dias o mesmo e tentar, depois, uma boleia, nem que fosse numa furgoneta, no regresso à cidade. Todos os dias tinha o mesmo gosto a aventura de Verão.