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Um humorista, um russo e um Centro Cívico

Ultimamente enfrento o meu dia-a-dia com dois livros de autores bem distintos: Ricardo Araújo Pereira e Fiodor Dostoievski. O primeiro, bem conhecido junto dos portugueses, dispensa quaisquer tipo de apresentações, já o segundo, nascido na Rússia durante o século XIX, é só um dos melhores escritores do mundo.

Ambos exploram a condição humana de diferentes formas: RAP satiriza, esmiuçando os mais pequenos trejeitos do ser humano, enquanto Dostoievski, de uma forma um tanto mais “obscura”, mergulha nos pensamentos e motivações que conduzem os homens às suas ações. Claro que esta definição não podia ser mais genérica.

Um momento de riso em Dostoievski é raro e, ao mesmo tempo, necessário. É uma lufada de ar fresco, uma bigorna tirada de cima de um corpo asfixiado, mesmo que só por uns segundos, é um alívio fugaz, mas tão necessário. Aprendi a apreciar mais o humor em Dostoievski e a mágoa em RAP.

Já os problemas, dores, os desaforos, o que quiserem chamar, debruçados em RAP; estão bem lá no centro, rodeados de muito humor e perspetivas cómicas. Contudo, se fizermos o raciocínio doloroso de pensar os problemas por aquilo que eles são, problemas, preenche-nos uma mágoa proporcionada pelo choque da realidade. Gosto de ter esta indissociável dicotomia entre a tristeza e o riso presente em quase tudo na minha vida.

Passemos então ao assunto principal deste texto: eu não consigo conter-me de sorrir de escárnio, perplexidade e de admiração sempre que olho o Centro Cívico do Porto da Cruz. Todas as pessoas que já tiveram a sorte de se deslocar até a esta localidade lindíssima, onde o mar e as montanhas governam a paisagem, por certo já tiveram a possibilidade de ver uma das construções mais feias à face da terra, lá está, o Centro Cívico.

Betão armado, cinzento, com uma espécie de túnel por onde passam carros? - este último deixa me sempre a rir por parecer uma longa baliza de futebol - paredes manchadas, janelas que outrora tinham vidro, hoje entaipadas por longas tábuas de madeira, até porque certamente não queríamos que alguém entrasse, não é verdade?

Isto traz-me ao momento triste que podia pertencer a um dos escritos de Dostoievski: parece estar ao abandono. Essa é a minha dor, um espaço de cultura ao abandono, embora ainda existam várias pessoas a utilizá-lo. Nestes casos existem sempre respostas prontas como a mítica “falta de verbas” e o grande “nem precisavam de ter construído esse calhamaço”. Vou ser advogado do diabo e defender o contrário, até pelas pessoas que continuam a utilizar este centro.

Aquele e todos os espaços dedicados à cultura da Região e à preservação da história da localidade, jamais deviam fechar e cair no esquecimento. O que falta a esse e a muitos outros estabelecimentos dotados dessas qualidades e propósitos, são as iniciativas de aproximação desses mesmos às comunidades que representam e para quem foram construídos.

De um jeito bem Dostoievskiano gostaria de tentar explanar que por detrás de um centro cultural esquecido, existe uma sociedade em declínio e as pessoas já mostraram que querem utilizar e utilizam o espaço. Contudo, o caso do Porto da Cruz não é único, infelizmente, e estas palavras dirigem-se para todos os edifícios desta natureza, como por exemplo a Biblioteca do Centro Cívico desta feita do Estreito de Câmara de Lobos que, durante imenso tempo, se encontrava fechada e onde recentemente, por fim, foram anunciadas futuras obras.

Para terminar num tom mais alegre, mais ao estilo de Ricardo Araújo Pereira, deixo-vos esta: é certo que o Centro Cívico do Porto da Cruz é feio e invulgar, mas sabem o que é que podem existir dentro dos centros cívicos? Livros de arquitetura. Assim, talvez no futuro, quem sabe, não cometamos os mesmos erros, pelo menos os estilísticos.