Crónicas

Os selos, ai os selos...

As fotografias eram esquisitas, paciência, o pior era alinhar com muito jeito e sem exagerar na cola os selos fiscais. Os selos tinham o formato de um selo dos correios e vendiam-se na Papelaria Condessa

Os ‘horários’ ainda eram de várias cores e muitos formatos, quase todos velhos e desconjuntados, quando passei do 10º para o 11º ano, o mesmo ano em que inventaram o passe jovem e, com isso, mudaram a história das minhas férias grandes. Às vezes basta um ou dois detalhes e comigo foi o passe e as entradas a menos de metade do preço para menores de 17 anos no Lido.

A minha mãe era uma senhora conservadora e discreta, que zelava pelo nosso nome e fazia discursos sobre o mal que podia recair sobre uma rapariga quando ficava falada. As mulheres deviam proteger-se das más companhias e evitar o falatório, mas a minha mãe era também muito sensível às despesas, ao dinheiro e não gastava um escudo sem pensar muito antes.

E por isso foi sorte. Os descontos calharam com os meus 16 anos e deram-me as primeiras férias grandes entre a beira-mar e os fins de tarde no Laranjal. O lado bom de ser quase adulta foram os dias inteiros entre o mar e a toalha, as sessões da tarde no cinema e uma ou outra coca-cola numa das esplanadas da marina. A adolescente que tinha vergonha de pedir um bolo ao balcão de um café ganhou confiança, desinibiu-se e começou a sonhar com ir estudar para Lisboa.

O convívio lá no Lido, dos irmãos mais velhos que estavam de férias da faculdade, as conversas que faziam e os tornavam tão especiais. Tinham andado de avião, dividiam casas com outras pessoas da mesma idade e eram donos deles mesmos. As pessoas com quem me cruzei na praia, na esplanada mudaram-me. Sem saber e sem ter sequer consciência disso, mostraram-me um mundo novo. O Laranjal estava só a meia hora de autocarro e, visto dali, com o ilhéu ao fundo, parecia tão longe.

E foram das minhas melhores férias, apesar do preço que a minha mãe me obrigou a pagar. Se estava apta a passar dias inteiros longe de casa, também tinha condições para tratar da burocracia e dos seus contratempos. Nesse ano desobrigou-se de toda a papelada que me dizia respeito e eu não me lembro de quantas viagens de autocarro fiz até conseguir matricular-me no 11º ano. Os dias que eu gastei para ter as vacinas em dia e como foi difícil escolher o lugar para tirar as fotografias.

As casas anunciavam as promoções à porta: 12 fotografias a cores e mais uma que dava colocar numa moldura. Lembro-me que fui pelo preço, prescindi da fotografia grande e entrei a medo no estúdio, onde me pediram para ficar direita e não pestanejar. Foi esquisito estar ali sem a minha mãe a dar ordens, a pentear-me o cabelo que, no fim, nem me ralei com o facto de estar com cara de tola.

As fotografias eram esquisitas, paciência, o pior era alinhar com muito jeito e sem exagerar na cola os selos fiscais. Os selos tinham o formato de um selo dos correios e vendiam-se na Papelaria Condessa. E nesse ano, como nos seguintes em que tive de me matricular, quando lá ia comprar os selos de maior valor estavam esgotados e nunca sabiam quando recebiam a nova remessa. O remédio era comprar o que havia, colar todos numa linha e esperar que a minha mãe conseguisse assinar por cima de todos.

Lembro-me do alívio, do peso que me saiu das costas quando, ao fim de uma semana e de várias viagens perdidas, lá entreguei a matrícula e meti na carteira o comprovativo com carimbo e assinatura. Foi o primeiro ano em que, de facto, tratei sozinha da minha vida. O ano em que se acabaram os apoios para renovar o bilhete de identidade, para ir ao médico ou tratar de qualquer papel, o mesmo em que tive as primeiras férias por minha conta, sem vigilância da família ou de pessoas conhecidas. E foi cá uma sensação!