Artigos

Um aspecto de civilização

Quem sair de Câmara de Lobos a caminho do Estreito pela Estrada João Gonçalves Zarco, depois de atravessar a ponte sobre a Via Rápida, se virar na primeira à direita irá dar ao caminho de São João, isto é, ao que resta da antiga Estrada Real 25 que ligava o Funchal a São Vicente. O caminho, como se pode constatar pelos blocos habitacionais de cinco pisos que o marginam 100 metros adiante, já não é o que era. Aliás, nem caminho nem paisagem são o que foram. Há cinquenta anos, não era possível ali encontrar construções deste calibre. Predominavam então as pequenas casas de dois pisos disseminadas na paisagem da vinha, que fez do Estreito a mais bela e a mais rica região vitivinícola da Madeira.

Recomendo, todavia, que a subida do caminho prossiga porque, 200 metros adiante, os mais persistentes terão a oportunidade de encontrar, irrepreensivelmente restaurada, a antiga capela seiscentista – dita de São João. Por detrás do muro está a quinta com o mesmo nome, hoje propriedade do engenheiro Aurélio Tavares, empresário e coleccionador de arte. Por sua iniciativa, com projecto do arquitecto João Nóbrega, a quinta trouxe a uma freguesia onde a iliteracia urbanística tem imperado aquilo a que Silvestre Ribeiro, em meados do século XIX, apelidou de “aspecto de civilização”.

Trata-se de uma intervenção exemplar em que o projecto de arquitectura, sem abdicar da contemporaneidade de materiais e soluções, consegue recuperar as antigas estruturas da quinta – palheiro, manjedoura, adega – atribuindo-lhes novos usos ou, pura e simplesmente, mantendo-os. É o caso da adega que, integrando um circuito de visita à quinta, continuará a fazer parte da sua função matricial: a produção de vinho. De assinalar o espaço dedicado a residências artísticas, que a nascente aflora sobre o muro do caminho de São João e a poente flutua sobre o campo de vinha – um volume revestido a tabuado de madeira pintada que imaginosamente reproduz a forma ancestral do telhado de duas águas que veio substituir.

De notar é também a sobriedade e destreza da intervenção no que se refere à recuperação da casa mãe, em particular a introdução do alpendre que é a um tempo sombreamento do espaço de estadia exterior e suporte de um grande número de painéis fotovoltaicos imperceptíveis do jardim. Mas o que verdadeiramente é de sublinhar – e mais se distancia dos estropícios que atravancam a paisagem do Estreito – é a galeria de exposições semienterrada sob o campo de vinha. Uma incisão cirúrgica no terreno deixa a descoberto a porta que se abre discretamente ao visitante; alinhadas pelas fiadas da videira três clarabóias levam luz natural ao interior; num pequeno saguão água e luz fazem vibrar uma escultura de Alfredo Ceschiatti... Como não se deixar seduzir por esta hábil e educada vontade de projectar respeitando a paisagem naquilo que ela tem de mais genuíno?