Crónicas

Eleições na Guiné Bissau, RTP África e o Hotel Coimbra

Um serviço público inestimável que vai garantindo também ele, um compromisso com a verdade e com a razão

À saída do avião, o choque térmico habitual faz-me suster (por momentos) a respiração, num misto de calor e de toque a rebate que mexem com os meus sentidos. Na verdade, as chegadas a Bissau são sempre sentidas de forma especial. Acho que foi o gosto que se foi apurando pela terra ou essa experiência boa que me traz um passado suficientemente recente para viver entranhado em mim. O caminho para a cidade é feito de forma tranquila, talvez por ser sábado ou por estarmos em plena campanha eleitoral. Subo as escadas do Hotel Coimbra onde me recebem por uns dias e aí o calor é outro. Falo do sorriso simpático com que a Sara me recebe e o cumprimento do Xia, disponibilizando-se para o que for preciso. Fazem-me sentir em casa e não há nada melhor do que essa sensação quando estamos de facto bem longe da nossa cama. O Hotel tem uma história única e percorrer aqueles estreitos corredores, pejados de livros e de peças singulares, fazem-me sempre viajar para outro tempo e a vontade de por ali escrever um livro, com estadia permanente de uma das personagens principais. A dona Francelina já não está mas perdura o sentimento de família que se escorre por todos os espaços do edifício, uma antiga casa, construída por gerações anteriores, a pensar nos descendentes e que se tornou grande demais. Serviu assim de albergue a 35 pessoas, na guerra civil de 1998 e nunca mais deixou de receber gente de toda a parte.

Cheguei no dia em que o Benfica acabaria por se tornar campeão nacional de futebol. Escolhi por isso o restaurante mais português da cidade (e também um dos melhores), o Coqueiros, para assistir ao jogo do título a convite do Nuno. No final, uma “amarguinha” bem portuguesa, com muito limão espremido para adoçar os festejos, no bar recentemente adicionado nas traseiras, onde também se encontravam duas mesas, que haviam saído da apresentação do novo livro “O Jardim da Celeste”, do escritor e delegado da RTP África Waldir Araújo, para o qual também havia sido convidado mas que não consegui ir. Já nos tínhamos conhecido numa viagem anterior e partilhado um almoço, mas só ali, ao lado da minha amiga Ady Batista, combinámos um encontro para falarmos no dia seguinte, uma vez que lhe solicitei alguma informação para as peças que pretendia escrever. De imediato me ofereceu uma sala na sede da RTP em Bissau para que pudesse trabalhar com todas as condições. Foi lá que me pude aperceber (ainda mais), de uma realidade a que prestamos muito pouca atenção. Da importância do papel da RTP, sobretudo nos PALOP, num salvaguardar de uma informação independente e criteriosa, muitas vezes vista com outro respeito por não se condicionar às amarras locais e ser um órgão internacional. Mas o caminho é estreito e imagino que se faça de pressões e tentativas de condicionamento que necessitam de uma gestão muito particular. Para além do agradecimento que tenho que fazer à RTP, saio da Guiné Bissau com um novo amigo a quem fiquei a dever algumas histórias, interrompidas ao sabor da melhor imperial da cidade, com mancara ( amendoim ) para acompanhar. Um novo amigo e uma nova amiga, a sua irmã Simone. Mas saio também com a certeza de um serviço público inestimável que vai garantindo também ele, um compromisso com a verdade e com a razão, que se estende muito para lá das reportagens culturais e que se encerra em desafios e aventuras constantes.

Mas voltando às eleições, Bissau é por estes dias uma cidade tranquila, onde se sente aqui e ali alguma ansiedade e uma natural expectativa. Encontrei-a no caminho de uma transformação que lhe vai finalmente alcatroando as ruas e que lhe dá uma nova vida, no chamado Bissau Velho. É incrível como essa zona da cidade ficou mais fresca e bonita, realçando-lhe os traços e as tradições assim como a traça histórica dos seus edifícios. Tão bonita que mal a reconheci desde a Praça do Império até ao porto. Cartazes, folhetos e muitas promessas enchem as ruas de uma população, que tal como em Portugal, parece um pouco descrente com a política e os políticos, com as soluções mas sobretudo com o cumprir do que é dito por esta altura. Dizem que o cheiro no ar é de surpresa e que hoje, domingo, haverá muito para contar. O grande partido da luta contra o colonialismo, o PAIGC de Domingos Simões Pereira, abriu espaço, devido a constantes lutas internas, ao Madem G-15 fundado por 15 dissidentes do primeiro e liderado neste momento por Braima Camará e onde desponta Suzi Barbosa, anterior ministra dos Negócios Estrangeiros e uma das mais promissoras políticas locais. Será entre estes a decisão de quem formará governo, sendo certo que qualquer solução passará quase de certeza por coligações estratégicas que lhes permitam ter uma maioria que não se preconiza a solo. Nessa segunda linha o PRS, partido de Kumba Ialá apela ao voto étnico (que tem aliás marcado parte da dialética destas eleições), o PTG de Botche Candé ou o duas vezes ex-primeiro ministro Baciro Dja e o seu recém formado FREPASNA serão tidos em linha de conta, sobretudo pela forte aposta na campanha porta a porta. Deixarei para outras peças uma análise política mais aprofundada, virada para o futuro e o que há-de vir, quando amanhã soubermos os resultados. Até lá, resta-me regressar a Portugal com este país mais uma vez bem cultivado no meu coração. Sou sempre bem tratado, ando nas ruas tranquilo, até de madrugada, acompanhei a campanha sem registar qualquer incidente e faço sempre amigos novos, que faço questão de levar para a vida. Isso não me impede de registar sempre os mais antigos, os que me deram a conhecer este país maravilhoso, que se estende até às Ilhas Bijagós. A Sassy Saúde Maria e o Adelino Dakosta são os meus e não existirão, certamente, palavras suficientes para lhes agradecer, até porque amizade como a nossa não se agradece. Sente-se.