Aquele olhar...
Há olhares e olhares. E todos eles revelam mais sobre quem olha do que quem é olhado. É que, todos os olhares estão carregados de filtros que funcionam como cortinas que não permitem ver aquele que é olhado. No fundo, são apenas vários níveis de cegueira. E a pior cegueira é a daqueles que pensam que vêem
Desde que tenho memória de mim que tenho também presente, o poder indissolúvel e impactante do olhar. Continuo a ler tão bem os “meus”, pelos olhares que lançam, a mim, aos outros, ao mundo. E leio também os olhares dos demais. É que o olhar é uma das maiores e significativas expressões de comunicação não verbal. Não é por acaso que se diz que “os olhos são as janelas da alma.” Portanto, somos sempre responsáveis pelo olhar que deitamos ao mundo e a cada pessoa com quem nos cruzamos. Costumo dizer que, se nas escolas houvesse a disciplina de empatia - que é das coisas mais sérias da vida - teríamos, garantidamente, muitos meses de aulas dedicados, em exclusivo, ao olhar. Até porque há o olhar e, depois, há o ver. É só por isso que há olhares que não vêem e há olhares que vêem.
Li, há muito, um texto que ilustrava, brilhantemente, várias formas de olhar. Foi-me enviado por uma professora que conhecia bem este meu fascínio. Nunca soube de quem era autoria, mas a mensagem ressoou forte por aqui. Diria que cumpriu o seu desígnio. O título era qualquer coisa como: “Quantos olhares já te olharam?”. Deixou-me a refletir. Muito. Ler esta lista de olhares, foi uma oportunidade de auto reflexão acerca dos olhares que recebi e recebo e sobretudo, que olhares lanço por aí. A mim. Ao outro. Até porque o olhar que lançamos a nós próprios é o que tendemos a lançar aos demais.
- O olhar amoroso, de quem quer o melhor para nós.
- O olhar apaixonado, de quem vê o sol em nós.
- O olhar opaco, de quem está a pensar noutra coisa.
- O olhar envergonhado, de quem precisa de se refugiar.
- O olhar ausente, de quem está noutra dimensão.
- O olhar julgador, carrasco e castrador, de quem vê atrás da cortina dos seus filtros repletos de preconceitos e julgamentos.
- O olhar embevecido, de quem idealiza e espera de nós o que nem a própria pessoa dá a si mesma.
- O olhar enraivecido, de quem está visceralmente fora de si.
- O olhar desconfiado, de quem nos teme como ameaça.
- O olhar ansioso, de quem só espera o pior.
- O olhar curioso e vivo, de quem quer descobrir-nos e conhecer-nos melhor.
- O olhar mentiroso, de quem o desvia antes que seja apanhado na curva.
Hoje, o convite desta crónica, é o de fazermos o exercício de vestir cada um destes olhares. Com tempo. Presença. Sem julgamentos. Depois, talvez seja mais fácil perceber que há um olhar mais, mais significativo, um olhar particular que se eleva a outro patamar: é o olhar de quando estamos alinhados e centrados. O olhar de quando vivemos conectados com a nossa essência, com a nossa verdade. É aquele olhar onde brota amor e com ele, a consciência.
Olhar outra pessoa (ou até nós próprios), em silêncio, olhos nos olhos é um gesto de amor e coragem, é colocarmo-nos em presença plena diante do outro, assemelha-se quase a entrar descalço num templo sagrado.
E a verdade é que bastariam alguns instantes olhos nos olhos, diante daqueles que dizemos não gostar, para começar a derreter o gelo e aproximar uns dos outros. E basta, tantas vezes, um olhar frente a frente com o espelho. É certo que é um desafio para o qual não nos preparam. Costumo lançá-lo aos meus alunos de neurolinguística. A maioria confessa, com espanto, que se sentiu aterrorizada no início e livre no final. Olhar para dentro pode assustar, pode trazer à memória, e à superfície, aqueles olhares que recebemos e que não deveríamos ter recebido. Claro, pode ser um exercício exigente - significa que estamos a sair do que conhecemos, do nosso conforto. Mas a ousadia traz uma generosa recompensa. Teremos posto de lado os nossos medos, preconceitos e julgamentos, teremos despido os nossos coletes balísticos, teremos finalmente, chegado a um lugar surpreendente e sublime. Mas, então, e se os verdadeiros heróis fossem aqueles que treinam diariamente o olhar, libertando-se do medo, da insegurança, da paranóia? Se fossem os que deixam de lado os dogmas sociais, a insegurança, a necessidade de ter razão? Se fossem os que, com o olhar, superam os próprios preconceitos?
Podemos e devemos treinar a musculatura do olhar numa perspectiva mais real e humana.
No início escrevi: há olhares que não vêem e há olhares que vêem. Então?! É que há olhares que vêem a cor, a diferença, a profissão, quem acompanha o discriminado. E há olhares que abraçam o mistério que é a vida e vêem o humano e o espiritual que habita cada um de nós. Escolho o segundo olhar. O olhar capaz de igual valor e dignidade, o olhar de ver um outro como eu, como quem lê agora, esta crónica.