Viver não custa!
Custa é saber viver…, o mundo é dos espertos…, o mundo é dos ricos…, enfim, uma miríade de frases que pretendem fazer crer que há uns quantos que se julgam mais do que os outros e que, por isso mesmo, podem fazer o que lhes dá na real gana sem que nada nem ninguém lhes “vá ao pêlo”.
Li há poucos dias num órgão de comunicação que um senhor, Marco Capitão Ferreira, actualmente Secretário de Estado da Defesa, teria cobrado, antes de ser nomeado para o cargo que exerce, ao Ministério da Defesa cinquenta mil (50.000) euros, mais IVA, por uma assessoria relacionada com a gestão dos contratos de manutenção dos helicópteros EH-101 utilizados em operações de busca e salvamento e evacuações médicas. O contrato tinha um prazo de 60 dias, mas 4 (quatro) dias depois estava executado. Isto passou-se em Março de 2019.
Alguns dias depois, já em Abril de 2019, o Sr. Capitão Ferreira foi nomeado para a presidência da comissão liquidatária de Empordef, antiga empresa estatal para a Defesa, pelo actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, então Ministro da Defesa.
Li isto, e sem saber bem porquê (?) lembrei-me de um outro capítulo da novela “O que custa é saber viver”, que tem quase diariamente feito primeiras páginas de jornais e aberturas de telejornais, aquele que descreve como a Eng.ª Alexandra quase que se abarbatava com perto de 500.000 (quinhentos mil) euros do erário público através de uma empresa privada mas de capitais públicos, isto é, uma empresa onde nós todos “metemos” uns significativos milhares de milhões de euros.
Poderíamos esgravatar mais que certamente haveríamos de encontrar mais capítulos, uns mais sórdidos que outros, mas todos demonstrando a “esperteza” de quem se consegue alcandorar a uns tachos bem recheadores de bolsos (e interessantemente todos com a conivência de políticos em cargos de poder!).
E nós a ver!!
E a deixarmo-nos encantar por outros tantos espertos galambeadores de tantas arcas perdidas, quais Indianas Jones sem charme nem chama de estrelas, mas com enorme capacidade de tornear as regras que depois nos obrigam a seguir: faz o que eu digo, não o que eu faço, dizem os ditos espertos que acham que o mundo é deles!
Ouvi uma vez uma história acerca de um cavalheiro que pretendia parquear uma daquelas “espadas” americanas, num lugar que exigia alguma mestria de condução e visão para fazer marcha atrás, quando um “esperto” conduzindo um carrito europeu ocupou o lugar de frente. Saiu do carro dizendo ao condutor da “espada”: “o mundo é dos espertos!!”. O outro sorriu, avançou o seu carro uns metros e fez marcha atrás com velocidade e, violentamente, abalroou o carrito quase desfazendo-o. Calmamente foi ver o estrago e virando-se para o “esperto” disse: “o mundo é dos ricos”, julgando-se também “esperto”. Mas como era rico, lá teve de pagar o arranjo ao carrito do primeiro “esperto”, numa manobra em que nenhum saiu a ganhar!
Ser ou não ser “esperto”, eis a questão?
Fazemos parte de uma sociedade complexa que tal como os humanos que a compõem, para sobreviver necessita que todos os órgãos e sistemas funcionem em sincronia uns com os outros, complementando-se e completando-se sem que nós tenhamos de ter consciência disso mesmo. Quando temos consciência de que há uma eventual dessincronização, ou “esperteza” não normal, a nossa atenção é chamada para essa falha que pode conduzir a um estado de mal funcionamento, de doença social ou, simplesmente de alteração pontual e, tomando a consciência dessa dessincronia, tentamos corrigi-la por nossa própria iniciativa através da nossa indignação colectiva.
Podemos também reconhecer essa assíncronia quando um factor exógeno (uma “chico-espertice” como soe dizer-se em bom português) faz com que se liberte maior quantidade da adrenalina da indignação, fazendo com que esta seja um factor de reacção social mais viva e emotiva, e que faz subir todos os nossos sentidos sociais, que se podem similar aos normais sentidos humanos.
Temos, facilmente identificados os normais cinco sentidos: o tacto, o olfacto, a visão, a audição e o gosto. Mas existem outros que normalmente não pensamos neles como sentidos, tal como a sensação do frio e do calor, que sentimos sem que interfiram qualquer dos “tradicionais”, nos quais incluo o da “esperteza”, aquele que faz com que alguns se julguem melhores que os outros, os “pobres mortais”.
Nos “pobres mortais” há um outro sentido, o da “anti-esperteza”, que é, em grande parte, produto do sincronismo que existe entre todos os sentidos, e que permite que a razão tenha um peso específico igual ao da emoção, fazendo com que a inteligência emocional social não se sobreponha nem se minimize em relação à inteligência racional, também social – ambas são factores necessários para a análise instantânea de todos os estímulos exógenos e endógenos que se apresentam à sociedade em cada minuto que passa.
Quanto mais dessíncronos estiverem os receptores aos estímulos, quanto maior fôr a divergência entre razão e emoção, mais possibilidade haverá para que se forme uma “chico-espertice”, isto é, um deficit emocional social provocará uma resposta “esperta” e calculista, acção típica dos que consideram que o mundo é dos espertos, e uma maior emoção provocará uma resposta mais “quente” dos que têm opinião contrária e que julgam que o mundo provavelmente seria bem melhor se não existissem os “espertos” que consideram ser seu o mundo.
Cabe à sociedade decidir com quem prefere lidar e viver, e se quer deixar que os Capitão Ferreira e Alexandra Dias deste mundo continuem a fazer com que as novelas da realidade continuem a ser alimentadas pelas suas atitudes de “esperteza”.
Eu prefiro e aconselho a viver sem ter de me preocupar com estas existências, mesmo sabendo que estou a alimentar uma utopia, uma ideia de justiça.
Mas faço-o com a consciência de saber que há uma coisa que os ditadores e os tiranetes da “esperteza ”nunca hão-de compreender: podem torturar, matar, enganar, fazer o que quiserem a um ser humano, mas nunca conseguirão matar uma ideia!
A ideia de que viver não deveria custar!