Crónicas

As regras para ser boa rapariga

Fui a alguns retiros onde se rezava e ficava em silêncio antes de ir almoçar e dançar ao som da música que vinha de um disco de vinil a tocar no gira-discos portátil

Eu não tenho histórias de acampamentos de escuteiros ou de férias no Porto Santo com amigos antes dos 18 anos. Havia uma regra no Laranjal, uma lei inventada pela minha mãe que me impediu de ter uma vida social além das excursões da escola e dos passeios do grupo de jovens da Visitação.

Fui a alguns retiros onde se rezava e ficava em silêncio antes de ir almoçar e dançar ao som da música que vinha de um disco de vinil a tocar no gira-discos portátil. E cantei desafinado na carroçaria de uma canter, de um “meio carro”, a subir pelo Poiso acima naquelas excursões que se combinava com pessoas conhecidas para evitar pagar bilhete.

A minha mãe vigiava os movimentos e só me deixou ir à praia e ao cinema com amigas depois dos 16 anos, sempre na sessão da tarde e garantia de chegava a casa no horário das sete e meia. Fosse ou que fosse que estivesse acontecer tinha de parar antes da sete para dar tempo de correr para a paragem mais próxima.

E como não encaixava no horário houve vários planos que foram água abaixo, apesar de me ter batido e chorado e esperneado. Não fiz as aulas de aeróbica, nem o curso de teatro, nem fui sequer às matinés de sábado nas discotecas. Os espectáculos à noite obrigavam a negociar com o meu irmão e ainda hoje lhe devo o baile de finalistas e ter chegado a casa às quatro da manhã.

O meu irmão foi o cúmplice desses anos, dividíamos muito, mas não deu para me levar com ele nos acampamentos, nem nas férias no Porto Santo. Um rapaz leva a irmã mais nova a muitos sítios, apresenta aos amigos, mas não abre mão daquelas coisas de homem. Afinal era também um miúdo a crescer, a viver e a seguir um caminho diferente do Laranjal.

Não tinha uma noiva, nem um carro e ninguém sabia o que iria fazer depois, quando acabasse o 12º e a tropa. Se eu sentia a pressão, ele também a percebeu, mesmo que fosse mais fácil quando se nascia homem. Ele podia e enfrentava as tias, o meu pai e desafiava o medo da minha mãe. A minha mãe andava sempre com o pressentimento que nos ia acontecer algo de ruim, mas na verdade não queria abrir mãos dos filhos.

E tinha medo dos maus caminhos. Acho que tentou adiar o momento. Primeiro que não ficava bem a uma menina andar por aí, sozinha, a passar férias com amigos e amigas; depois porque não tinha dinheiro para suportar passagens e despesas. As minhas férias foram sempre iguais até fazer 18 anos: em casa, a ler, a ir à praia e morrer de tédio em dias longos e sempre iguais.

Eu não queria entrar por maus caminhos, queria ter uma vida social, ter amigos e amigas, pessoas para partilhar o café, para rir, mas a porta para esse mundo só se abriu quando fui estudar. O medo, a proteção excessiva, as regras que impediam as raparigas de ser livres e o moralismo do que era ser boa menina tiraram-me parte dessa aventura que é a adolescência.