O meu tio Humberto
A arte entrara em acelerado declínio, mas, como não tinha outro saber, o meu tio resistia como podia
O meu tio Humberto era um homem calmo e paciente, dono de uma alfaiataria na Rua da Carreira, da qual era também o único funcionário. A arte entrara em acelerado declínio, mas, como não tinha outro saber, o meu tio resistia como podia. Todos os dias, com sol ou chuva, abria a porta da garagem para tirar de lá o carro velho do momento. Teve vários Fiat em quarta ou quinta mão e um Opel Kadett que o deixou parado na estrada várias vezes e era tão antigo que os cintos de segurança apertavam como os dos aviões.
Não sei se isso o incomodava e lamento nunca lhe ter dito como me enchia de orgulho ter alguém com carro na família. Era como se fosse meu também e o meu tio nunca me falhou. Levou-me ao médico, à Barreirinha e foi o velho Opel que carregou as malas até ao aeroporto quando fui estudar para Lisboa. Como tinha paciência e bom coração, era ele que ia ao mercado e ao talho todos os sábados de manhã e, às vezes, trazia bolacha Maria da Fábrica Santo António e café de mistura da Pretinha dos Cafés.
O Humberto, como o tratavam a minha mãe e as minhas tias, gostava de sair com os rapazes amigos e de organizar torneios de cassino na garagem, onde as grades de cerveja e laranjada faziam de bancos. Os homens e rapazes da vizinhança juntavam-se lá ao domingo a fumar Boa Viagem, Bingo Grande e SG, enquanto jogavam e ouviam o relato na telefonia. Não era bem o relato, mas a tarde desportiva, com todos os jogos da I Divisão e da II Divisão e gritos dos golos a interromper o relato que estivesse a dar.
Na parede e por cima da mesa onde se contavam ‘cartas’ e ‘pretas’ estava uma fotografia da equipa do Porto, os campeões da época 1958/59. O meu tio Humberto era a única pessoa que entendia de bola na família e tinha esse amor futebolístico dividido entre o Porto e o Marítimo. E sofreu e festejou com a bola como sofrem os adeptos. Foi ele que me ensinou a olhar para o campo, a entender as regras básicas do jogo e as outras não escritas como não fazer piadas quando a derrota ainda está quente.
Vi como ficou feliz quando o Marítimo subiu de divisão e como não desistiu do clube depois, quando andou dois anos na II Divisão. Amor é amor e não vai assim. O meu tio festejou muitas vitórias depois disso e viu o clube chegar às competições europeias e a finais da Taça de Portugal. É claro que o Porto lhe trouxe mais alegrias e outro nervosismo com títulos que ele não imaginara ganhar quando pendurou a fotografia da equipa dos anos 50. Na hora do jogo nem a minha tia Alice o interrompia.
O futebol fazia-o feliz a ele, um homem bom, alfaiate de profissão e pai de família. E foi no meu tio Humberto que pensei quando o Marítimo caiu no play-off nos Barreiros, com o estádio cheio a torcer pela equipa. O mundo é outro e muito diferente daquele que guardou nos recortes do jornal ‘A Bola’, os negócios envolvem muitos milhões, mas a tristeza seria igual para o meu tio, sem tirar, nem por.