O que vamos deixando por aí
O processo de escrita é um ato de reflexão mas também um exercício de solidão e de nos confrontarmos com o que somos, o que gostaríamos de ser e o que podemos melhorar em nós. É por isso que sempre que escrevo uma crónica desligo a televisão e meto o telefone no silencio. Gosto de me concentrar, de ser eu e as palavras que escolho. Esta semana não foi diferente, ainda assim, depois de 10 minutos fechado nos meus pensamentos e antes de começar a escrever fui ver se o telemóvel tinha algo de registo. E tinha. 2 chamadas não atendidas de amigos meus de Moçambique. Achei estranho porque não falávamos há algum tempo e resolvi ligar para saber se estava tudo bem. Do outro lado uma voz amiga que não era o dono do telemóvel cobrava-me o facto de não lhe ter devolvido primeiro a chamada. A partir daí o telemóvel andou de mão em mão, gente que ao perceber que era eu do outro lado me queria mandar um abraço, palavras bonitas de saudades e de amizade com a mesma pergunta de sempre “quando é que nos vens cá visitar?”. A semana passada, numa viagem de trabalho à Guiné Bissau senti mais ou menos o mesmo. Gente que ficou em mim, que conheci e privei nas minhas viagens a África e que quando souberam da minha chegada fizeram questão de me ligar para saber se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa e para me deixarem o recado que estava proibido de me ir embora sem os ver. Este preambulo é apenas rampa de lançamento que serve como exemplo para o que de facto importa escrever.
Nós somos o rasto que deixamos. É isso que nos define. A marca que deixamos nos outros, o tempo que gastamos a dar atenção, os momentos que vivemos, a nossa forma de estar e a forma como os outros se recordam de nós. O que espalhamos por aí, muitas vezes sem termos a noção da importância que certas atitudes significam para os outros. Se a nossa vida não se deve guiar pelo que as pessoas que de uma forma ou de outra se cruzaram connosco pensam de nós, a verdade é que a imagem que deixamos acaba sempre por nos definir. E muitas vezes as nossas ambições e objectivos pessoais não são compatíveis com a disponibilidade de gastarmos o nosso tempo e as nossas energias a criar relações, a ouvirmos e a nos dedicarmos aos que nos rodeiam. Às vezes não dá para tudo e temos que escolher. Ainda assim acho que seremos sempre mais felizes se conseguirmos ir deixando nos outros memórias boas que ficam e que não se esquecem. O pior que nos pode acontecer é sentirmos que já não alimentamos expectativas, que não esperam nada de nós, que não há por aí ninguém que faça questão da nossa companhia. Que não significamos nada ou que de nós já não esperam nada. Eu acho que a vida também se faz de por onde quer que passemos, sentirmos que somos bem vindos, que as pessoas fazem questão que estejamos presentes e que ficam felizes por nos ver.
Às vezes esquecemo-nos disso e só nos lembramos quando nos encontramos com alguém a quem ficámos a dever uma justificação ou a quem desiludimos. Sendo certo que nunca poderemos agradar a todos é sempre bom quando nos sentimos desejados, nos sentimos queridos e de uma forma tranquila podemos ir a qualquer lado sabendo que a sombra que nos persegue e a historia que deixamos para trás provoca sentimentos positivos. Que quem nos olha tem uma imagem nossa que nos orgulha mesmo que nem nos conheça assim tão bem. Mesmo que as circunstancias da vida nos aproximem ou afastem deste ou daquele percebermos que quando os voltamos a encontrar o que ficou para trás foi bom. Ninguém é imune ao que se vai construindo sobre nós. À percepção geral do que somos ou do que representamos. Ao que sabemos que se diz. E mesmo que não tenhamos que viver em função disso, esse lastro que vamos deixando acaba por ter influencia na nossa satisfação pessoal. Ninguém é feliz sozinho, não há sucesso pleno sem alguém para partilhar. Não há nada mais difícil do que a relação entre pessoas, da capacidade de pensar para lá do que é para nós. Acho que é das coisas mais bonitas que podemos ter, olhar para trás, olhar para o lado e vermos pessoas que gostam do que significamos para elas, dos que têm saudades nossas, dos que sentem a nossa falta e dos que se lembram de nós porque de alguma forma os marcámos com alguma coisa positiva. Ter gente que nos liga, que se preocupa, que não nos abandona e que nos espera. Gente que acredita, que confia e que quando pensa em nós, simplesmente sorri.