Todos os madeirenses têm enfermeiro de família?
O deputado socialista, Élvio Jesus, tem dúvidas quanto à cobertura total da Região por estes profissionais de saúde apontada pelo secretário regional da Saúde
No mais recente debate sobre a Saúde da Região, na Assembleia Legislativa da Madeira, que teve lugar na passada quinta-feira, a cobertura de médico e de enfermeiro de família voltou a estar em cima da mesa, com críticas e elogios a serem apontados pela oposição e pela maioria no poder.
Numa das suas intervenções no referido debate potestativo, requerido pelo JPP, e em resposta à deputada e enfermeira social-democrata Cláudia Perestrelo, o secretário regional com a pasta da Saúde afirmou que a cobertura regional nestas valências tinha aumentado 30%, no último ano.
Falamos muito em médico de família, falamos muito em enfermeiro de família. (…) o importante não é só o médico de família. O importante é o médico de família, é o enfermeiro de família e como sabe a taxa de cobertura em enfermeiro de família, pelos 350 enfermeiros da comunidade, já temos cobertura e é de 100%. Mas queremos melhorar. Pedro Ramos, secretário regional de Saúde e Protecção Civil
Nas contas de Pedro Ramos, os 178 médicos de família e os 350 enfermeiros “da comunidade” são suficientes para garantirem que pelo menos 82,5% dos madeirenses tenham um médico que os acompanha num contexto familiar e que todos tenham à disposição um enfermeiro de família, já que a cobertura apontada é já de 100%.
Mas, o governante não convenceu todos os deputados. Foi o caso de Élvio Jesus, que é enfermeiro de profissão. O socialista recorreu à sua página de Facebook para tornar pública essa sua dúvida, interrogando-se se essa cobertura de enfermeiro de família será mesmo de 100%. Lançada a semente, não se fizeram esperar as reacções, muitas delas de concordância, com alguns internautas a darem conta de que não têm enfermeiro de família atribuído, considerando, por isso, que Pedro Ramos terá mentido.
O DIÁRIO procurou ouvir algumas estruturas ligadas à classe para ‘tirar a limpo’ a análise dos factos. Nesse sentido, tanto a Ordem dos Enfermeiros, como o Sindicato dos Enfermeiros da Região Autónoma da Madeira (SERAM) entendem que as contas do secretário da Saúde, quando feitas de modo generalista, até podem ‘bater’ certo, mas não deixam de evidenciar que, na prática, a realidade não poderá ser tão linear, será antes dinâmica, parafraseado o próprio governante.
Nuno Neves, por exemplo, ressalvando que os números concretos estarão apenas na posse da Secretaria Regional de Saúde e Protecção Civil e do Serviço Regional de Saúde (SESARAM), nota que, com base no levantamento feito junto de alguns colegas, de uma forma geral, “os utentes inscritos no Serviço de Saúde da RAM, têm efectivamente, enfermeiro de família atribuído”.
Para o presidente do Conselho Diretivo Regional da Madeira da Ordem dos Enfermeiros, “esta realidade varia um pouco em função da dimensão dos Centros de Saúde, isto é, habitualmente as localidades mais pequenas têm melhor cobertura e menor número de famílias atribuídas por enfermeiro, que variam sensivelmente entre 1.000 a 1.500 utentes”.
Por essa razão, entende que a capacidade de resposta às solicitações possa ser variável, “em função destas realidades e das próprias necessidades em saúde/doença da população”. E pese embora possíveis dúvidas ou situações que possam não ser efectivas, Nuno Neves defende que “é notória a evolução, nestes anos mais recentes, na cobertura de enfermeiro de família nos Centros de Saúde da RAM”.
Além disso, o representante da Ordem na Região defende que “para que os cuidados de saúde primários sejam mais eficazes era importante alargar o leque de competências dos demais profissionais que lá exercem [além dos médicos], por forma a que se agilizassem as respostas às necessidades das pessoas”, dando como exemplo a questão dos partos eutócicos e da vigilância das gravidezes de baixo risco que poderiam ser realizados e acompanhados pelos enfermeiros especialistas de saúde materna.
Já Juan Carvalho mostra-se mais incisivo no distanciamento entre a teoria e a realidade. O presidente do Sindicato dos Enfermeiros da Região Autónoma da Madeira ouviu “com estranheza” as afirmações de Pedro Ramos sobre este assunto, porque daquilo que conhece, na Madeira, “os cuidados de saúde primários não estão organizados de forma que as intervenções dos enfermeiros se façam por conjunto de agregados familiares ou por agregados familiares ‘per si’” e “toda a organização das intervenções do enfermeiro na comunidade e junto das famílias não está em consonância com a terminologia utilizada”.
Além disso, o sindicalista entende que se perdeu “o conhecimento individual dos utentes e da família por parte dos enfermeiros”, e ainda que persistam “alguns bons exemplos” diz não ser essa a realidade generalizada dos cuidados de saúde primários da Região. De caminho, Juan Carvalho não deixa de criticar o facto de apenas estar a funcionar, para já, a Unidade de Saúde Familiar da Ponta do Sol, ainda que, no seu entender, “de forma incipiente”.
Não deixa de apontar e criticar, igualmente, o facto de actualmente, os enfermeiros desempenharem as suas funções com base numa lista médica, quando se esperaria que “acompanhasse o perfil e uma ou de um conjunto de famílias por área geográfica”, estando mais voltados para o tratamento do que para a prevenção da saúde.
Tendo em conta estes argumentos, Juan de Carvalho considera “conta de mercearia” os números apontados por Pedro Ramos, “que não quererá dizer, em bom rigor, nada”, lembrando a “descapitalização de muitos profissionais” de que os cuidados de saúde primários da Região foram alvo no passado, reforçando a área hospitalar. “Só na anterior legislatura e na actual é que se foi direccionando enfermeiros para alguns centros de saúde”, remata, alegando existir “um grande déficit de enfermeiros nos cuidados de saúde primários”, tendo em conta o que diz serem os mínimos da dotação segura estabelecida para a profissão. “Na grande maioria dos centros de saúde da Madeira existe falta de enfermeiros”, sustenta.
Desta forma, alega que o verdadeiro modelo de intervenção comunitária dos enfermeiros não existe, porque “um enfermeiro de família obriga a que a organização dos cuidados se altere de forma que esse profissional saiba concretamente que núcleos populacionais tem a seu cargo”, só acontecendo “em casos esporádicos de bons exemplos”.
Não aceita, por isso, uma estrutura em que os enfermeiros assumem apenas um papel complementar às equipas médicas, fazendo conciliar as consultas de enfermagem apenas com a vinda do utente ao centro de saúde para uma consulta médica. “Não há uma intervenção autónoma do enfermeiro na comunidade por grupos populacionais”, alega Juan Carvalho, levando-o a entender que, embora os números possam justificar a referia cobertura a 100%, “o verdadeiro enfermeiro de família não existe”. “O conceito de enfermeiro de família do Secretário é diferente do do sindicato”, atesta.
Se me dizem que todas as famílias têm um enfermeiro, claro que os profissionais estão nos centros de saúde e têm de prestar cuidados, mas que esteja implementado um modelo de enfermeiro de família que acompanha os agregados de forma sistematizada e contínua, envolvendo todos os seus elementos, este modelo de intervenção não existe. Juan Carvalho, presidente do Sindicato dos Enfermeiros da RAM
O DIÁRIO questionou o SESARAM quanto à cobertura de enfermeiros de família na Região, tendo aquele Serviço de Saúde apontado o número total de enfermeiros ligados aos centros de saúde como suficientes para responder a todas as necessidades dos utentes de cada localidade.
Quanto ao facto de alguns madeirenses poderem não ter enfermeiro de família atribuído, o SESARAM, através do seu enfermeiro director, vincou que "ao longo do ciclo vital, todos os utentes no seu processo de saúde ou doença têm uma resposta de enfermagem em todos os centros de saúde da Região".
José Manuel Ornelas salientou, também, que "nos 47 centros de saúde da Região Autónoma da Madeira, temos enfermeiros a desempenhar funções na actividade do Planeamento, Monitorização e Controlo; enfermeiros de Cuidados Gerais que integram as equipas de saúde (médico e enfermeiro), enfermeiros especialistas de Saúde Infantil e Pediátrica, Saúde Materna e Obstétrica, Saúde Comunitária, Saúde Mental e Psiquiátrica e Reabilitação, com um perfil de competências, que permite diariamente acompanhar todas as pessoas com necessidades específicas nestas áreas, num trabalho contínuo e de proximidade".
Além disso, "sempre que o enfermeiro de família possa não estar presente, o utente/família é atendido por outro enfermeiro", deixa claro, notando que "mais do que falar em enfermeiro de família, importa falar sobre as respostas, dadas a nível integral, a todas as pessoas - utentes/famílias e comunidade, pelos enfermeiros dos Cuidados de Saúde Primários".
José Manuel Ornelas argumenta, ainda, com a resposta dada pelos enfermeiro durante a pandemia, que, refere, foi "elogiada por muitos" e que "veio tornar mais visível o trabalho já há muito desempenhado por estes profissionais, junto de toda a população".
Nas contas de Pedro Ramos entraram 350 enfermeiros afectos à saúde comunitária, de entre os 659 profissionais desta classe que estão ligados aos Centros de Saúde da Região. No total, o SESARAM conta com 2.023 enfermeiros nos seus quadros, isto de acordo com os números divulgado pela própria empresa pública que tutela os cuidados de saúde na Região, no passado dia 12 de Maio, Dia Internacional do Enfermeiro.
Estes números apontam para um aumento percentual entre 2015 e 2023 na ordem dos 29%.
As dotações seguras emanadas pela Ordem dos Enfermeiros apontam para 1.550 utentes ou 350 famílias para cada enfermeiro de família, partindo do pressuposto de que cada agregado terá, em média, quatro elementos.
Atendendo aos dados demográficos apurados nos Censos de 2021, a Madeira tem uma população residente na ordem dos 250.744 habitantes e 94.844 agregados domésticos. Significa isto que, atendendo aos 350 profissionais de enfermagem referidos por Pedro Ramos como sendo enfermeiros de família, estão respeitados os mínimos defendidos pela Ordem, com uma média de 716 pessoas ou 271 agregados por cada um desses profissionais, traduzindo uma cobertura total da Região.
Contas feitas, a afirmação de Pedro Ramos, apontando para uma cobertura de 100% dos enfermeiros de família na Região é verdadeira, pese embora algumas entidades ligadas ao sector entendam que o modelo de enfermeiro de família não está devidamente e adequadamente implementado.