Crónicas

As cartas de amor

A minha tia, com aquele feitio complicado e difícil, não foi capaz de esconder, nem o amor, nem as cartas de amor

A minha tia Conceição está muito velhinha, são 90 anos naquele corpo franzino onde se notam os estragos do tempo, mas aquela senhora de cabelo branco, que é um vulto da pessoa que já foi, não se verga tão depressa, mesmo ali na maca nas urgências. Eu lembro-me dela com a idade que tenho agora, lembro-me de a achar velha na altura, todas as pessoas com mais de 40 anos eram velhas.

E não fugiam disso, não como agora em que é de evitar tudo o que lembre a envelhecimento. A minha tia é, de facto, velha e deve ter lutado muito para se orientar neste mundo, sobretudo para alguém que veio do Laranjal e cresceu num tempo em que as regras estavam definidas e estabelecidas. As mulheres mandavam dentro de casa; os homens assumiam o papel de pais de família e o resto não existia, nem contava para a história.

As pessoas casavam e tinham filhos ou ficavam solteiras e viviam recatadas, mais ou menos impedidas de amar. As mulheres e os homens solteiros eram remetidos para uma espécie de não existência. Ou melhor para amparo das famílias, para cuidar dos pais velhos e eram chamados a ajudar na educação dos sobrinhos e dos irmãos mais novos. A minha tia Conceição fez tudo isso: apoiou na doença, deu dinheiro. Sei que tinha um feitio complicado, lidei com ele muitas vezes, com as explosões de raiva e a generosidade.

Levou-me ao Porto Santo e comprava-me morangos quando estive doente e, apesar de tudo o que fez por mim e de ser parte da minha história, tenho a impressão que sei tão pouco da pessoa que foi. Está ali, na maca, e dela posso apenas contar que não se casou, que tentou seguir uma vida religiosa e que se arrependeu logo a seguir e correu para casa. O nome consta da lista de passageiros que embarcou no hidroavião em Lisboa logo a seguir ao acidente na Madeira.

A minha tia gostava de viajar, de comprar presentes, fazia amigos tão depressa como os perdia e, em nova, terá gostado de um rapaz. A minha mãe e as minhas outras tias não falavam disso, era passado e devia ficar onde estava. Não sei bem os contornos desse amor, mas do que me lembro do Laranjal da minha infância não foi preciso muito para o deitar por terra.

Aquele fundamentalismo da pureza das mulheres num instante rotulava uma rapariga como leviana se tivesse tido um namoro de varanda e juras de amor em bilhetes trocados às escondidas. Aquele código era cruel para as mulheres e não lhes exigia apenas que fossem virgens, proibia que sentissem. A minha tia, com aquele feitio complicado e difícil, não foi capaz de esconder, nem o amor, nem as cartas de amor.

E sei que queimou tudo por causa da minha avó, pelo falatório que se levantou na vizinhança. Foram as cartas e foi-se o amor e, quando eu nasci, a minha tia era já uma senhora de 40 anos, solteira e sem perspectiva de casar. Nunca casou.