Dias bárbaros
O surf mudou o Jardim do Mar e colocou a Madeira no mapa mundial deste desporto
O título deste artigo de opinião é retirado do livro de William Finnegan, jornalista da revista The New Yorker e repórter de guerra, que ganhou com esta sua autobiografia um Pulitzer em 2016. William conhece muito bem a Madeira, pois como surfista esteve durante vários anos a desafiar as ondas do Jardim do Mar e do Paúl Mar. Dedica um capítulo deste seu livro premiado, Baixo Profundo, à sua vivência na Região entre 1994 e 2003.
É muito interessante através desta sua obra, conhecermos o olhar de um estrangeiro sobre a nossa ilha. Cedo se apercebeu do fenómeno da emigração: “A ilha era famosa pelo seu vinho, mas a sua principal exportação não era a bebida, eram as pessoas. (…) As pessoas, em especial as mais novas, ainda emigravam em grande número. África do Sul, Estados Unidos, Inglaterra, Venezuela, Brasil - todos os madeirenses que conheci pareciam ter parentes que viviam no estrangeiro.”
Como muitos dos surfistas que vinham à descoberta das famosas ondas, hospedava-se no Jardim do Mar em quartos alugados, muito antes de se criar aquilo que agora chamamos de alojamento local (AL). William descreve uma realidade social e as dificuldades de gente com vidas difíceis: “Estava alojado num quarto diante da onda no Jardim. A minha senhoria, Rosa, vivia no andar de baixo. Tinha cerca de vinte anos, nascida na aldeia. O marido estava em Inglaterra a trabalhar num restaurante de fast-food no aeroporto de Gatwick. Rosa tinha dois quartos que alugava a surfistas. Eram ambos minúsculos e simples, mas estavam mesmo de frente para a grande onda. Os oito dólares por noite que eu pagava não pareciam melhorar muito o orçamento da família. A mãe de Rosa vivia com ela, e costumavam ir as duas, montanha acima, até à estrada principal nos Prazeres, uma extenuante hora de caminho, para não pagar os poucos escudos do autocarro.”
O surf mudou o Jardim do Mar e colocou a Madeira no mapa mundial deste desporto, apesar da desconfiança inicial dos locais, que William apercebeu-se quando diz que “os aldeões pareciam preocupados, e com razões para isso, com os visitantes mais rudes, e não muito felizes por alguns miúdos locais terem aderido aquele desporto perigoso. Ainda assim, os campeonatos eram bem-vindos - traziam dinheiro à aldeia - e, certamente, nenhum local partilhava da minha preocupação com o crowd da água. O surf estava a ligar o Jardim ao mundo, e eu tinha de me lembrar quão profundo era o anseio dessa ligação.”
Aquela era uma época em que o dito desenvolvimento, e uma série de grandes obras, avançava mais rápido do que uma prancha a surfar uma onda. Para além de infra-estruturas necessárias, como vias rápidas e túneis, também se construía o que seria dispensável. “De acordo com a União Europeia, estes projetos iriam gerar poupanças de tempo. Entretanto estavam a criar empregos para os madeirenses e lucros imprevistos para as empresas com bons contatos políticos e para os empreiteiros locais.” E William prossegue a sua análise: “A enorme transferência de fundos da UE para a Madeira, que estava em curso - eram centenas de milhões de euros - tinha para mim algo de irónico. (…) Infraestruturas, pelo menos em teoria, eram uma coisa boa. Na realidade, contudo, estava horrorizado com alguns dos projetos: eram hediondos e um verdadeiro desperdício, e muitos pareciam servir apenas como fontes de emprego temporário e de dinheiro”.
A minha vida acaba por cruzar-se, naquela altura, com a de William, mas também com a de Will Henry. Nunca fui surfista, mas participei como ativista na proteção das ondas do Jardim do Mar, quando o governo regional anunciou a construção de um passeio marítimo. William recorda: “O projeto não tinha avançado sem oposição. Um surfista da Califórnia chamado Will Henry, que costumava ir à Madeira, tinha organizado um protesto. Ambientalistas, geólogos, biólogos e surfistas de Portugal e do estrangeiro encontraram-se e desfilaram em protesto no Funchal e no Jardim. A ameaça à grande onda do Jardim não era o único ponto de preocupação - havia mais spots de surf a serem enterrados sobre outros elefantes-brancos, incluindo marinas. De acordo com os manifestantes, o boom de construção alimentado pela União Europeia estava a destruir a ecologia costeira da Madeira como um todo.”
Numa altura em que tanto se tem falado de “obras inventadas”, ficam as citações deste livro para reflexão, pois os “Dias Bárbaros” ainda não acabaram.