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As Canções de Abril

Abordando o relacionamento entre a música e a sociedade, o antropólogo Jonathan Shannon sugere não só que a música é a sociedade, mas que é a sociedade numa perspetiva de 3D real, sendo simultaneamente o microcosmo, espelho e prisma de todas a forças sociais e contradições da cultura, política e história. Enquanto espelho, a música reflete as forças rivais da sociedade para a sociedade em si. Havendo certas condições, refrata-as de volta para a própria sociedade, agindo como um filtro e amplificador que faz vir os sentimentos subalternos ao de cima, para a esfera da consciência pública. A música, portanto, tal como outras formas de arte, pode fomentar e sustentar as mudanças sociais e políticas.

A função política da música é comum para todas as sociedades e estilos, mais obviamente expressa através de textos e títulos politizados, permeando a vida e movimentos sociais ao longo de várias disputas pelo mundo fora. Neste sentido, o género mais acessível e acolhido é a canção, uma forma de expressão aberta e próxima de todos.

A canção revolucionária é um género da canção que, tacitamente ou abertamente, preconiza e glorifica a revolução ou a afirmação dos valores patrióticos. De ponto de vista histórico, tendo existido em praticamente todos os países do mundo, inclui, no passado mais recente, canções desde “A Marselhesa” francesa, “A Internacional” soviética (cujo texto - que ironia - originalmente foi escrito em França para se poder cantar com a melodia da “Marselhesa”), “O Hino da Batalha da República” (Já refulge a glória eterna) estadunidense, e “A las barricadas” espanhola, até ao atual hino nacional romeno que começou como uma canção revolucionária em 1848 e o atual hino nacional croata que começou como canção da afirmação da identidade croata em 1835, na altura da ascendente dominação húngara. Até as canções populares como “La cucaracha” mexicana ou “Yablochko” (Pequena maça) russa foram utilizadas para passar a mensagem, com textos largamente alterados e adaptados.

Foi propriamente esse o caso da canção que serviu como segundo sinal, escolhida pelos golpistas do 25 de abril para confirmar o golpe e marcar o início das operações. Emitida no Rádio Renascença, vinte minutos depois da meia-noite, “Grândola, Vila Morena”, escrita por José Afonso em 1964 e gravada em França, em outubro de 1971, fez parte do álbum “Cantigas do maio” e originalmente não tinha sido concebida como uma canção de protesto. Foram as alterações feitas na altura da gravação que fizeram dela uma mensagem altamente política no contexto da ditadura do Estado Novo. A canção foi acolhida pelo povo, sobretudo depois da apresentação no âmbito do 1º Encontro da Canção Portuguesa, em março de 1974, tornando-se rapidamente um símbolo da luta popular. Há fontes que indicam que a melodia foi proibida pelo regime e outras que indicam que foi uma das poucas que evitou a censura e, assim, chegou a ser apresentada tanto no Encontro como na RR. Também há fontes que afirmam que a canção foi composta no carro, no regresso depois duma atuação em Grândola, mas uma testemunha direta (José Mário Branco, o producente do álbum de Afonso) indica que o próprio Afonso referiu que a canção, antes de ser gravada, já tinha sido cantada, embora uma só vez, propriamente nessa atuação em Grândola.

Já para o primeiro sinal de preparação para o golpe foi escolhida uma canção sem qualquer conotação política direta, não sendo passível de suscitar qualquer dúvida das autoridades sobre o seu significado oculto. “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, foi transmitida pelos Emissores Associados de Lisboa, às 22h55 do dia anterior. A canção foi a vencedora no 12º Festival RTP da Canção e chegou a representar o país no Festival Eurovisão da Canção 1974, acabando, no entanto, por partilhar o último lugar com outros três países. De qualquer maneira, o significado histórico desta canção obviamente ultrapassa de longe a sua avaliação por um júri que, mesmo na altura, provavelmente não tenha sido nada mais objetivo do que hoje em dia.

Por conseguinte, as duas canções, mesmo sendo tão díspares e contrastantes, já fazem parte indelével não só da história da sociedade portuguesa mas também da história mundial da canção revolucionária.

Feliz 25 de abril!