Crónicas

Na buganvília da entrada

Os meus tesouros serão, nesse futuro de inteligência artificial e de eficiência tecnológica, entulho, mais ou menos como o que vou encontrando pelos cantos da fazenda

Não sei como será comigo, o que farão do meu espólio de livros, de sapatos e vestidos e mais uns colares e anéis de prata. É capaz de acabar no lixo, numa feira de velharias ou num leilão. Se tiver sorte e chegar a velha o que ficar para trás será também o legado de uma velha. Que interesse poderão ter livros em papel ou revistas antigas ou uns brincos de prata que, certamente, terão passado de moda?

Os meus tesouros serão, nesse futuro de inteligência artificial e de eficiência tecnológica, entulho, mais ou menos como o que vou encontrando pelos cantos da fazenda. Pedaços de ferro, madeiras amontoadas, restos de azulejos, blocos e ladrilhos do chão. O meu pai não deitava fora quase nada, sobretudo se lhe parecesse que podia ter um uso.

Fazia pouca diferença que as peças fossem descasadas umas das outras. Por ele o entulho misturava-se bem. Um tubo da canalização velha da casa de banho servia para estaca e não era preciso fazer cerimónia: com dois blocos de cimento, umas tábuas e uns arames arranjava-se um suporte para vasos, bem protegidos do sol e da chuva com umas chapas de zinco. E nunca entendia bem de que me queixava.

Não lhe parecia tralha e protegia os pedaços de ferro, as máquinas velhas e aquele espólio a que tento dar uma ordem e um fim. Não é fácil. A vida de agora, o mundo em que vivemos é diferente, tem regras, normas e começa a ser difícil explicar que a fazenda é lá em cima no Laranjal e por lá a vida ainda é como antes, mas quem atende já não sabe o que é isso de “como antes”.

“Mande mail e diga que resíduos pretende remover e as quantidades, identifique o género e então podemos apresentar o orçamento”. A meninas que atendem os telefones não percebem. O que está espalhado na fazenda seguia os planos do meu pai e ele era um homem do tempo da escassez, que vivia com a ideia de aproveitar e poupar e que seguiu esse plano no quinhão de terra que a minha mãe herdou.

“E a propriedade é grande?” A mim parece-me imensa com tudo o que exige para tentar mantê-la mais ou menos organizada. Há o mato para limpar, aquele entulho para tirar e o que isso custa de trabalho e dinheiro. “Se calhar seria melhor vender”, mas o conselho cai-me mal, quase que me ofende.

A fazenda é a mesma onde cresci. A menina do outro lado da linha não faz ideia de que lá sobrevive uma ameixeira de São João que a minha mãe mandou plantar e que as anonas são tão doces como as que havia em casa do meu avô. Ou que na buganvília roxa da entrada há um ninho de melro preto que me faz lembrar o meu pai. Se fosse vivo teria orgulho nisso, que era assim mesmo, o mestre que acumulava entulho e o homem que encantava com pequenos nadas.