Fact Check Madeira

Será verdade que é improvável uma condenação a prisão efectiva no ‘Caso do Monte’?

Foto Rui Silva/Aspress
Foto Rui Silva/Aspress

Arranca amanhã, no tribunal do Funchal (Edifício 2000), o julgamento dos dois arguidos do processo do chamado ‘Caso do Monte’. A ex-vice-presidente da Câmara Municipal do Funchal e o chefe da divisão de espaços verdes da autarquia são acusados da prática de 13 crimes de homicídio por negligência e 24 crimes de ofensas à integridade física por negligência. O primeiro destes crimes é punido com pena de multa ou até cinco anos de prisão (negligência grosseira). O segundo crime é punido com pena de multa ou até dois anos de prisão (ofensa à integridade física grave). Qual a probabilidade de serem condenados a uma pena de prisão efectiva?

Embora possível, a probabilidade do colectivo de juízas presidido por Joana Dias condenar Idalina Perestrelo e Francisco Andrade a penas de prisão efectivas é baixa, dadas as circunstâncias em que ocorreu a queda da árvore no Monte mas também tendo em conta o histórico dos julgamentos por este tipo de criminalidade. Eram públicos os alertas para o perigo que representavam algumas árvores do Largo da Fonte, mas não houve qualquer pedido de atenção especificamente relacionado com o mau estado do carvalho que veio a cair e provocar 13 mortos e meia centena de feridos. Há também que ter em conta factores que pesam a favor dos arguidos, como não lhes serem apontadas condutas negligentes, estarem bem inseridos em termos familiares e sociais e não apresentarem passado criminal.

Ao longo das últimas três décadas, o DIÁRIO noticiou pelo menos 21 processos que resultaram na condenação de arguidos pelo crime de homicídio por negligência. Apenas em cinco casos houve condenações a penas de prisão efectiva e nestes ficaram provadas condutas graves dos arguidos que contribuíram directamente para a morte de pessoas. Em 12 processos, as penas de prisão foram suspensas ou substituídas e em quatro casos houve apenas uma pena de multa.

CASOS DE CONDENAÇÃO A PENA DE PRISÃO EFECTIVA

A 8 de Setembro de 1992, uma furgoneta, conduzida por Domingos Jardim, irrompeu pela multidão que se encontrava no arraial do Loreto, provocando a morte de oito pessoas e ferindo outras 40. Alguns dos feridos ficaram inválidos. A 31 de Janeiro de 1996, no tribunal da Ponta do Sol, o condutor foi condenado a três anos de prisão. Apesar de haver várias vítimas mortais, foi tudo considerado um só crime de homicídio por negligência.

Quatro anos de prisão efectiva foi o castigo aplicado ao motorista do autocarro que se despistou a 23 de Dezembro de 2005, na rotunda do Laranjal, em São Vicente, com turistas de nacionalidade italiana. Cinco passageiros perderam a vida no acidente. Na decisão judicial, com data de 15 de Maio de 2009, considerou-se que o motorista estava embriagado e seguia em excesso de velocidade.

Três anos de prisão efectiva foi a pena a que foi condenado o condutor que na madrugada de 6 de Dezembro de 2014, na zona do Campo da Barca, atropelou mortalmente um jovem de 23 anos. A decisão do tribunal do Funchal foi tomada a 19 de Dezembro de 2018, com a juíza Joana Dias a considerar que o acidente ocorrido junto a uma passadeira “ficou a dever-se à conduta desrespeitadora, descuidada e grosseira do arguido”, que conduziu o carro sem ter carta de condução, seguia ao dobro da velocidade permitida no local, ‘furou’ o sinal vermelho e estava alcoolizado e sob efeito de droga.

O condutor que na noite de 11 de Junho de 2010 causou a morte a um motociclista de 27 anos quando circulava em contramão na via rápida foi condenado, pelo Tribunal de Santa Cruz, em Maio de 2013, a uma pena efectiva de dois anos e oito meses de prisão. A juíza Paula Pott considerou o arguido, um funcionário público de 47 anos e com historial de problemas com álcool e drogas, culpado do crime de homicídio por negligência grosseira. Deu como provado que entrou com o seu Renault Clio em contramão na saída da via-rápida do Caniçal e circulou sempre no sentido inverso ao do trânsito até ao interior do túnel da ribeira da Boaventura, em Santa Cruz, onde acabou por causar a colisão com a moto da vítima.

Uma pena efectiva de 14 anos de prisão foi o castigo a que foi condenado o homem que, em Agosto de 2016, provocou um fogo florestal em São Roque, que se veio a propagar por grande parte do Funchal, resultando na morte de três senhoras na zona da Pena. No tribunal do Funchal o arguido foi condenado por dois crimes - incêndio florestal agravado pelo resultado e homicídio por negligência grosseira. Em recurso, os juízes conselheiros do Supremo Tribunal consideraram que apenas estava em causa um crime, mas mantiveram a mesma pena.

CASOS DE CONDENAÇÃO A PENA DE PRISÃO SUSPENSA

Em Outubro de 1997, três jovens candidatos à Guarda Florestal perderam a vida numa prova de pré-selecção realizada nas serras do Pico do Areeiro, com condições climatéricas adversas. As mortes foram causadas por fome e cansaço (hipotermia e hipoglicemia). Em Fevereiro de 2003, na Vara Mista do Funchal, o ex-coordenador da Guarda Florestal foi condenado a uma pena de um ano e seis meses de prisão pela prática, em concurso de infracções, do crime de homicídio por negligência. A pena foi suspensa por 2 anos. O arguido vinha acusado pelo Ministério Público de 3 crimes de homicídio por negligência e 21 crimes de ofensas à integridade física. Apesar do elevado grau de ilicitude, o Tribunal, seguindo jurisprudência, entendeu estar perante um concurso de infracções e não da prática individual de cada um dos crimes. A negligência tida em conta foi por inconsciência, uma vez que o arguido não previu que uma tragédia pudesse acontecer.

A 8 de Julho de 2004, o Tribunal Judicial do Funchal condenou o condutor de uma carrinha do Santacruzense que se despistou em 2001 numa pena de 2 anos de prisão. A pena ficou suspensa por 18 meses na condição do arguido, de 52 anos, entregar 500 euros à Cruz Vermelha e outros 500 euros aos Bombeiros Voluntários Madeirenses. O caso remonta a 13 de Fevereiro de 2001 quando a carrinha se despistou no interior do túnel do Pinheiro Grande, via rápida Santa Cruz/Funchal, tirando a vida aos jogadores Zé Rocha e Miranda, e ferindo um outro.

A 30 de Setembro de 2008, o Tribunal da Ponta do Sol condenou um automobilista de 40 anos numa pena de um ano e dois meses de prisão pela prática de um crime de homicídio por negligência. A pena foi suspensa. Estava em causa um acidente mortal de moto, ocorrido pelas 23h30 de 26 de Maio de 2001, no qual perdeu a vida um empresário da área da restauração, de 35 anos. O acidente aconteceu no sítio da Murteira, na Estrada Regional n.º 101, na antiga descida para a Ribeira Brava, que agora só tem sentido ascendente. O motociclista perdeu o controlo do seu veículo quando o arguido fez uma manobra de mudança de direcção com a sua viatura ligeira, para entrar em casa.

A 5 de Maio de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa condenou a 26 meses de prisão, com pena suspensa, o jovem condutor de um veículo interveniente num acidente ocorrido a 27 de Maio de 2001, na Estrada Monumental, perto do hotel Duas Torres, por ter sido responsável pela morte de uma jovem de 21 anos, ocupante do veículo com quem embateu naquela fatídica madrugada (3h55). Antes o Tribunal Judicial do Funchal tinha-o condenado a 36 meses de prisão. O tribunal deu por provados os factos, designadamente que tinha adquirido o carro na véspera, ia a conversar com dois amigos, não tinha seguro, ia a uma velocidade superior a 100 km/hora, que "invadiu" a faixa contrária e que abandonou o local do sinistro.

Dezoito meses de prisão, com pena suspensa, foi o castigo aplicado pelo tribunal do Funchal ao condutor de um Opel Corsa que, a 25 de Julho de 2001, mudou de direcção, sem os devidos cuidados, no entroncamento do Caminho do Engenho Velho com o Caminho do Amparo e, desse modo, veio a atingir um motociclo conduzido por um bombeiro de 41 anos, que perdeu a vida no acidente de viação. A decisão judicial foi conhecida a 23 de Abril de 2003.

A 3 de Junho de 2008, o Tribunal Judicial do Funchal condenou a 18 meses de prisão, com pena suspensa, o condutor de um camião que abalroou um ‘Renault Clio’, na Boa Nova a 5 de Março de 2007, provocando a morte da jovem de 18 anos que conduziu a viatura ligeira. Na leitura da sentença, o juiz considerou que o comportamento do condutor do camião foi “extremamente grave”, a roçar a “negligência grosseira”, por vir distraído. A impudência do condutor foi censurada e a pena só não foi mais pesada pelo facto de arguido não ter antecedentes criminais e ter a seu cargo três filhos menores.

A 12 de Abril de 2013, o tribunal do Porto Santo condenou o ex-presidente da Câmara do Porto Santo, Roberto Silva, e dois vereadores a três anos e meio de prisão, com pena suspensa, no processo da queda de uma palmeira durante um comício do PSD, em Agosto de 2010, que causou a morte de duas pessoas e ferimentos numa terceira. O colectivo de juízes, presidido por Paula Pott, concluiu que os arguidos cometeram dois crimes de homicídio por negligência e um crime de ofensa à integridade física por negligência. No recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa condenou-os apenas como autores de um crime de homicídio por negligência na pena de dois anos de prisão, igualmente suspensa mas com possibilidade de desempenharem cargos públicos.

A 15 de Abril de 2013, o Tribunal da Ponta do Sol condenou a um ano e seis meses de prisão, com pena suspensa, um condutor que se despistou, embriagado, na madrugada de 28 de Julho de 2011, na Serra de Água, causando a morte de um jovem de 18 anos que seguia na mesma viatura, no lugar do ‘pendura’.

A 28 de Abril de 2015, o Tribunal do Funchal condenou um agente da PSP a dois anos e três meses de prisão, com pena suspensa, pelos crimes de homicídio por negligência e condução perigosa sob efeito de álcool. Os factos ocorreram na madrugada de 10 de Dezembro de 2011, em Câmara de Lobos, quando o polícia, fora do horário de serviço, conduzia a viatura particular com uma taxa de alcoolemia de 1,03 gramas/litro de sangue e atropelou um homem de 52 anos, projectando-o para o leito da Ribeira do Vigário, de uma altura de cerca de 15 metros, após o que abandonou o local do acidente.

A 17 de Maio de 2018, o tribunal de Santa Cruz aplicou dois anos de prisão, com pena suspensa, pelo crime de homicídio por negligência grosseira, ao empresário que explorava o bar do Caniço onde uma criança morreu na sequência da queda de um insuflável que foi arrastado pelo vento em 15 de Maio de 2015.

A 9 de Janeiro de 2018, no tribunal do Funchal, uma jovem de 26 anos foi condenada a 480 horas de trabalho a favor da comunidade (em substituição da pena de 1 ano e 4 meses de prisão) e ao pagamento de uma multa de 1.500 euros. Foi o castigo por, a 22 de Julho de 2016, na Estrada da Boa Nova, ter provocado a morte de um homem ao fazer uma manobra perigosa com o carro, sem ter carta de condução e sob o efeito de droga. A vítima mortal foi um homem de meia-idade que no dia do acidente descia de mota a Estrada da Boa Nova, na zona da 3.ª Travessa do Transval, e que, ao deparar-se com a manobra da condutora desencartada, se desequilibrou e caiu na estrada.

A 10 de Maio de 2019, no tribunal do Funchal, um homem de 69 anos, residente em Santo António, foi condenado a 8 meses de prisão, com pena suspensa, pela prática dos crimes de homicídio por negligência e condução de veículo em estado de embriaguez. Na origem do caso esteve um acidente de viação ocorrido ao final da tarde de 9 de Novembro de 2017, quando o arguido, alcoolizado, conduzia um carro na Estrada da Eira do Serrado, no sentido Curral das Freiras-Funchal. Ao descrever uma curva, perdeu o controlo da viatura, embatendo com o lado direito num prumo de cimento. Com o despiste, o irmão do condutor, que seguia no lugar do ‘pendura’, embateu com a cabeça no para-brisas e sofreu ferimentos graves na coluna cervical, vindo a falecer quatro meses depois.

CASOS DE CONDENAÇÃO A PENA DE MULTA

Em Julho de 1998, quando o piloto Pedro Matos Chaves treinava para o Rali Vinho Madeira, no troço Poiso-Santo da Serra, o seu BMW colheu mortalmente um motociclista de 29 anos, que se dirigia para casa ao final de uma jornada de trabalho na estação da Meia Serra. Em 21 de Dezembro de 2001, o Tribunal de Santa Cruz condenou o piloto a pagar uma multa de 450 contos (cerca de 2.245 euros), pela prática do crime de homicídio por negligência. A pena foi atenuada porque as culpas foram repartidas entre o motociclista e pelo piloto.

A 8 de Outubro de 2009, o Tribunal Judicial do Funchal condenou a uma pena de multa, no valor de 1.000 euros, o jovem condutor de uma viatura que se despistou na via-rápida a 19 de Julho de 2008, provocando a morte de três dos cinco jovens ocupantes. O acidente ocorreu quando o grupo de amigos se dirigia para a praia. O brutal acidente ocorreu à saída do túnel da ponte da Ribeira de João Gomes. O tribunal entendeu estar perante a prática de um só crime de homicídio e optou por uma pena de multa, em vez de uma pena de prisão suspensa, tendo em conta a idade do arguido, não ter antecedentes criminais, ter admitido os factos e demonstrado arrependimento sincero.

O pagamento de uma multa de 1.800 euros foi a pena aplicada em Abril de 2013, pelo tribunal de Santa Cruz, à enfermeira de 46 anos de idade que provocou um choque frontal de veículos ligeiros a 11 de Março de 2011, perto do túnel do Porto da Cruz, do qual resultou na morte de um funcionário da empresa ‘Estradas da Madeira’, residente no sítio da Referta, que seguia numa viatura no sentido contrário.

Um médico do Serviço Regional de Saúde (SESARAM) foi condenado a uma pena de multa no valor de 2.040 euros, a 16 de Junho de 2021, no Juízo Local Criminal do Funchal, pelo crime de homicídio por negligência, devido ao atendimento de um paciente que foi tratado nas Urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça como se tivesse doença do sistema digestivo e que veio a falecer com um problema cardíaco em Abril de 2015. A pena aplicada ao profissional foi simbólica porque o juiz Jorge Alexandre da Silva concluiu que o seu grau de culpa foi leve.

O histórico de julgamentos na Madeira por crimes de homicídio por negligência e as circunstâncias em que ocorreu a queda da árvore no arraial do Monte, a 15 de Agosto de 2017, mostram que, a serem considerados culpados, é pouco provável que sejam aplicadas penas efectivas de prisão aos dois arguidos