Guia para uma vida diferente
A pobreza era, no fim de uma década de inflação galopante e FMI, uma espécie de doença endémica que ia até aos ossos e corrompia os sonhos, parecia não ter cura
As mães não diziam às filhas para ir estudar, não era assim no Laranjal e nos lugares como a curva de estrada onde cresci. Nesses becos, ladeiras e caminhos o futuro era arranjar um trabalho, um marido, uma família e deixar a universidade para os filhos dos doutores da cidade e a gente da alta, duas categorias de pessoas que escasseavam lá por cima. A vida tinha um ritmo e uma lógica e, em 1989, era esquisito alguém meter na cabeça um plano que destoasse disto.
A pobreza era, no fim de uma década de inflação galopante e FMI, uma espécie de doença endémica que ia até aos ossos e corrompia os sonhos, parecia não ter cura. O dinheiro começava a entrar na economia, havia fundos europeus, cursos de formação pagos, mas, por dentro, na maneira de pensar estava como antes. Os filhos dos pobres seriam operários; as licenciaturas ficavam para a classe média.
E, por isso, quando comprei o guia do ensino superior na papelaria, soaram os alarmes. Nós não íamos estudar, nós não tínhamos dinheiro. A minha mãe não estava preparada para me largar no mundo, assim, com 18 anos e, pior, queria proteger-me de um desgosto e do mal de sonhar demais. O projeto era mais simples: tirava um curso de professora, aqui, debaixo da asa, era bom, não era? Na minha cabeça não era.
Tudo o que me lembro do Verão de 1989 está ligado à candidatura, os exames, às notas e a uma estranha de sensação de já não estar bem em casa como antes, embora continuasse a dormir no mesmo quarto, a ir aos domingos à tarde a casa da minha tia Alice e a comer os lanches com chocolates que a minha tia Teresa fazia quando estava de férias do colégio. Eu já não estava bem ali, tinha começado a imaginar como seria Lisboa, as pessoas, os colegas e o curso.
O futuro, o que ia começar, não incluía a rotina do Laranjal, era como se me estivesse a despedir, como se tudo fosse transitório ou provisório. A minha vida estava prestes a iniciar-se noutro lugar, a muitos quilómetros de distância, com outras pessoas, noutra cidade e com hábitos diferentes. Eu não fazia ideia que teria, depois, nos dias mais solitários, saudades do aconchego que, naquele último Verão antes da faculdade, me pareceu sufocante.
O aconchego com que a minha mãe e as minhas tias tentavam manter-me por perto. Em Lisboa – essa Lisboa que representava todo o território continental – não teria pequeno almoço feito e roupa passada, mas eu tinha decidido que ia. E tinha percebido que, para ir, teria de tratar da bolsa de estudo, da passagem, do desconto da passagem, de um lugar para ficar. E foi parte da aventura tratar de tudo isso com 18 anos, sem saber bem por onde começar e sem me permitir ter vergonha.
E não sei onde fui buscar coragem para fazer tudo o que fiz numa época em que as mães não diziam às filhas para ir estudar, em que a pobreza era endémica e as pessoas pensavam, de facto, que a universidade era só para os filhos dos doutores. Fácil não foi, mas alegra-me pensar que parte destes tabus se quebraram nos últimos 30 anos. O normal é estudar, fazer a licenciatura, mestrado e doutoramento, o normal é sonhar mais e ninguém estranha.
E isso é bom. O que ainda não se curou foi esta pobreza, esta falta de dinheiro endémica.