A senhora professora
E era bonita, mas de uma maneira particular, um cabelo cor de cobre, olhos azeitona que sobressaíam nas roupas modernas e na maquilhagem. O quarto escondia sapatos de salto, blusas de seda, frascos de perfume e um sem fim de caixinhas de sombras, batom e pincéis
Fui a sobrinha mais nova, a última dos primos e levei pela vida essa sensação de ter chegado tarde, muito depois do tiro de partida e quando os outros levavam já duas voltas de avanço na corrida. Lembro-me de ver a minha prima Ana a arrumar a mala para ir de férias para Canárias e de ver o vestido da viagem pendurado na porta do guarda-fatos, com os sapatos de salto agulha já prontos a calçar. A minha prima foi, enquanto eu crescia, a imagem da elegância e do bom gosto, uma espécie de ‘influencer’ familiar.
E era bonita, mas de uma maneira particular, um cabelo cor de cobre, olhos azeitona que sobressaíam nas roupas modernas e na maquilhagem. O quarto escondia sapatos de salto, blusas de seda, frascos de perfume e um sem fim de caixinhas de sombras, batom e pincéis. Quando podia e a porta estava destrancada, passava lá horas a abrir e fechar gavetas e a imaginar que, um dia, muito mais à frente na vida, também eu teria um lugar assim, um refúgio como aquele.
Por entre os espelhos e a roupa, a minha prima guardava os livros e os cadernos, um estojo cheio de esferográficas e lápis, mais uma caixa de giz para escrever no quadro, coisas que trazia quando não estava na escola. Eu conheci quase todas por onde andou durante a minha infância, ser a mais nova trazia isso, a missão de fazer companhia. Eu fiz companhia para ir ao médico, às compras e nos dias depois do fim das aulas, quando as salas estavam vazias e a professora cumpria horário até ir de férias.
Tenho memórias de uma escola em Câmara de Lobos, de outra no Lombo dos Aguiares, mas as mais vivas são das Fontaínhas, um lugar ali para os lados do Cabo Girão, onde se chegava depois de subir uma vereda e andar por um caminho de terra. O sítio ficava lá, a meio da serra, umas quantas casas e uma escola com o modelo do Estado Novo, com duas professoras. A minha prima fez o caminho com chuva, com sol, 30 minutos a pé depois de sair do autocarro da Rodoeste. Eu só me lembro do calor, já depois das aulas, em pleno mês de Julho, com as ameixeiras carregadas de fruto.
O meu irmão e eu íamos à vez fazer companhia para tornar aquele percurso menos pesado, lembro-me de que a estrada de terra parecia não ter fim, de como havia tantas curvas até chegar ao destino. Nunca se ficava lá muito tempo e era mais divertido quando nos levava aos dois, as senhoras perguntavam sempre se eram filhos, aqueles dois meninos que vinham da cidade. Primos, dizia sempre, com um sorriso. A minha prima era um exemplo até nisso, ninguém lhe via a angústia.
E tinha muita, mas ser professora pagava melhor, dava prestígio, ninguém parecia ver o esforço, nem o desconforto. Não era efectiva, todos os anos ia a concurso e mudava de escola. A vida nos anos 70 era dura e até a minha prima – com as roupas modernas e maquilhagem da moda – palmilhava o caminho de terra com o par de sapatos que trazia dentro de um saco e esperava, ao sol, pelo autocarro. Os autocarros demoravam, eram velhos, vinham cheios e, lá dentro, havia um bafo de ar saturado. A viagem não era agradável, volta e meia, alguém cedia aos balanços e metia a cabeça fora da janela para vomitar.
Com a sensação de estarmos no fim do mundo, numa curva indistinta da estrada regional, parecia uma benção aceitar boleia dos poucos carros que passavam. Não era muito melhor. Lembro-me de uma vez nos termos apertado dentro de um táxi, com o motorista todo sorrisos por levar uma senhora professora tão bonita. Mais difícil foi trepar para a carroçaria de uma furgoneta, pois só havia lugar para a minha prima na parte da frente, mas os motoristas, todos, dos carros grandes, do autocarro, das furgonetas sentiam-se felizes por levar a professora.
Por ser bonita, simpática e bem falada, mas sobretudo por ser professora, por ter esse talento de ensinar, esse poder que as pessoas simples costumam reconhecer e reverenciar. Tal como tudo o resto, tal como dinheiro, o saber era um bem raro nos anos 70, mas eu lembro-me de como me sentia orgulhosa da minha prima.