A solidão de todos os tempos, da Anunciação à Semana Santa
Diria mesmo que a solidão é experiência de todas as pessoas. Hoje, a idade avançada, as doenças e limitações psicológicas de comunicação, demências, perdas de memórias, limitações de audição, vista, movimento, somadas às desagregações de famílias, separações, abandonos, conflitos e corte de relações multiplicam a solidão indesejada. Por isso, torna-se uma preocupação e necessidade que os serviços de saúde, sociais e as organizações de solidariedade e caridade, dobrem as medidas para reduzir tantos sofrimentos de solidão com medidas humanas técnicas, espirituais e de fé cristã.
Solidão não é estar só porque ninguém está só, nunca, mas sentir que tem que viver, enfrentar e decidir o que só a pessoa é chamada a viver e decidir como seu sentido e missão de vida. Esses momentos podem ser os de escolha de estudos, profissão, escolha de namoro e de casamento, ou de não namoro e outras alternativas. Decidir ser um consagrado na vida religiosa, no sacerdócio, em situação de celibato ou vida de solteiro (a), cuja palavra etimologicamente é de viver só, separado. Por vezes, o termo desliza para o sentido pejorativo, desdém, de solteirão, solteirona. A solidão pode ser desejada e não desejada; ser de risco para a saúde mental; e de estresse, que afeta a saúde geral. São frequentes os dias dolorosos de solidão nas doenças sobrevindas de surpresa, doenças cancerosas, acidentes traumatizantes com mutilação e tantas situações semelhantes. As separações de pessoas íntimas pelo casamento, o dom dos filhos, uma vida de comunhão de longos anos vividos em amor generoso e solidariedade, podem ficar ameaçados com um fim doloroso de separação, ressentimento e desavença de difícil cura e perdão; ou até de morte por idade avançada de um ou do outro familiar.
Mas a solidão não tem que ser desesperança. Pode até ser, nalguns momentos, solidão procurada e tempo de interioridade, e de plenitude espiritual, e parte integrante de vida de fé cristã e comunhão com Deus. E ser reparada pela cura das feridas e do perdão. Os dias, já próximos da Semana Santa, e da Páscoa convidam a contemplar a solidão como tempo de grande sentido cristão e experiência da presença mística, e de fé. Celebrámos a solenidade da Anunciação do Senhor Nossa Senhora (25 de março) que enfrentou, sozinha, o momento único de decidir a missão da sua vida. Ela não era um robot; turvou-se de receio e foi sossegada pelo Anjo. Não estava só, porque ninguém está só, mas a decisão era dela e comprometia toda a sua vida. E ela decidiu no seu coração, de acordo com a vontade divina, perante a revelação do Altíssimo e a cooperação do Espírito Santo, aceitar ser Mãe desse Filho que não era do seu José. Na apresentação do seu Menino no templo, o velho Semião, assistido também pelo Espírito Santo, anunciou-lhe que a sua vida incluía uma espada de dor ao lado das bênçãos e das dores do seu Filho; este seria para salvação e perdição de muitos. Os cerca de 33 anos de Jesus, e de outros tantos de Maria com Ele, foram de grande intensidade de gozo e alegria, de dor e solidão para os dois, e agora mais de dor. S. José há muitos anos teria feito a sua passagem para junto d’Aquele que lhe pediu, quando em sonhos e solidão, que aceitasse Maria sua noiva fiel e fosse pai do filho que ele não tinha gerado da carne. A Semana Santa, tempo de densa dor e solidão, convida a extasiar-se com os olhos da alma em Jesus a chorar lágrimas de sangue no Jardim das Oliveiras em oração ao Pai a pedir angustiado que o livre do caudal de dores físicas e, mais ainda, das mentais que o reduziam a vítima de humilhações e desprezos infames. E a contemplar a Senhora da Dores, a comungar dessa solidão dolorosa, de coração trespassado pela espada anunciada por Semião. Junto à cruz, sobe ao auge quando Jesus se interroga: Meu Deus, porque me abandonaste? E mistura-se com o gozo quando Jesus infunde misericórdia com palavras de amor e perdão: ao ladrão arrependido diz: hoje, estarás comigo no paraíso; e a João: eis a tua Mãe; e ao Pai: nas tuas mãos entrego o meu espírito! As cenas da Semana Santa podem curar vários graus de solidão, humanos e divinos; solidão de abandono, ressentimento, ofensa, abuso e ódio que cortam a comunhão de vida invisível circulante, chamada amor. Só o perdão faz as pazes e reduz o sofrimento da solidão, e repõe progressivamente a circulação do amor vital indizível de shalom, paz, alegria e felicidade, experiência totalmente distinta da felicidade corriqueira de sensações de comes e bebes, musculares e cerebrais, e de vanglórias de fama e de riquezas paranóicas. Imagine-se, a breve tempo de morrer, a felicidade do ladrão ao ouvir de Jesus: hoje estarás comigo no meu reino!
Aires Gameiro