Crónicas

Os meus tesouros

Renho uma montanha de papel, livros e relíquias insignificantes e poeirentas de uma vida que já passou

O talão do meu primeiro ordenado está dobrado em quatro numa agenda antiga com capa de cabedal onde, nos primeiros anos de jornalista, apontei números de telefone e guardei cartões de visita, as entradas de cinema dos filmes que gostei e o bilhete da primeira vez em que andei no metro de Paris. São pedaços da pessoa que fui, lembram aquela rapariga que entrou pelo gabinete do gerente do jornal a exigir os dois meses de salário, com os olhos rasos de lágrimas e morta de vergonha.

O dinheiro era importante e eu tinha lutado por ele, lutei também para o receber. Falei ao diretor, ao chefe de redação e depois ao gerente, que não era costume aparecer jovens de cabelos compridos, calças de ganga surradas e óculos redondos para trabalhar nas férias. Os 150 contos faziam-me falta para pagar o quarto em Lisboa e precisava de uns óculos, de ir ao dentista e já me tinha imaginado com o blazer da montra da boutique Quatro Estações, uma loja elegante que ficava atrás da Assembleia.

Fui inconsciente e corajosa como somos sempre que a necessidade aperta. Eu não tinha pais ricos, estava ali a engolir o travo amargo da humilhação. Até eu sabia que não era certo suplicar o salário e o gerente também. Uns dias depois chamaram-me e, no fim, quando os 150 contos caíram na minha conta de estudante senti-me parte da vida, do mundo dos adultos. Não sei se os jovens de agora sentirão algo assim, semelhante ou aproximada àquela alegria idiota de ser dono de si.

Tão idiota que me fez dobrar em quatro o recibo e guardar no mesmo lugar onde, nos anos seguintes, fui somando troféus de pequenas vitórias, pedacinhos de papel e outros trastes que me pareciam tesouros valiosos desse caminho para ser uma mulher crescida, adulta e independente. O sonho era esse e, enquanto recortava as minhas reportagens e guardava em capas de argolas, o futuro parecia-me possível e brilhante. E o meu pai até mandou fazer uma estante grande onde pudesse arrumar as tralhas, os livros, os souvenirs das primeiras viagens.

E esse espólio acumulou pó e mofo; resistiu a uma infiltração no terraço e a um derrame nos canos da casa de banho. Os livros têm as folhas amarelas, o papel lustroso das revistas perdeu brilho e os peluches estão sujos e um destes dias terei de decidir o que fica e o que vai, o que é mesmo importante e o que é lixo. Nunca é simples. A minha mãe não gostava de deitar pedaços de tecido fora e aborrecia-se quando se podavam as roseiras demasiado rente; o meu pai nunca se desfazia dos restos de material, mesmo que fossem meia dúzia de ladrilhos descasados.

Eu tenho uma montanha de papel, livros e relíquias insignificantes e poeirentas de uma vida que já passou. Há muito que deixei de ser aquela rapariga das fotografias do passe jovem, uma modalidade que me permitiu poupar naqueles primeiros três meses de trabalho pago. Há uma eternidade entre nós, mas ainda assim o recibo do primeiro ordenado fica onde está, tenho orgulho no que fiz para o ganhar.