"Dor fantasma" aborda a cultura de cancelamento que conduz à opressão e à autocensura
O escritor brasileiro Rafael Gallo, autor de "Dor fantasma", considera que a cultura de cancelamento está a conduzir as pessoas à opressão e autocensura prévia, alertando para o risco de se criar "um monstro para combater outro monstro".
Este é um tema abordado, de forma subliminar, em "Dor fantasma", romance de Rafael Gallo vencedor do Prémio José Saramago 2022, que chegou esta semana às livrarias, publicado pela Porto Editora.
A obra conta a história de Rômulo Castelo, um pianista virtuoso, que se dedica inteiramente a buscar a perfeição na sua arte e que, todas as manhãs, ao acordar, se fecha na sua sala de estudos e ensaia aquela que é considerada a peça intocável de Liszt, o "Rondeau Fantastique".
Em breve, Rômulo irá oferecê-la ao mundo, numa 'tournée' pela Europa que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor, mas um acidente amputa-lhe a mão, deixando-o incapaz, conduzindo-o a um processo de quase loucura, em que, na sua obsessão pela perfeição, se revela cada vez mais intolerante e violento para com os outros, incluindo os seus alunos de música e o próprio filho.
"Para ele existe o jeito certo de tocar, o jeito certo de viver, você tem de ser assim e qualquer coisa fora disso está errada e tem que ser eliminada, o que é um padrão dos extremistas em geral: Hitler, Bolsonaro, Macbeth. Esse perfil de tragédia me interessava", disse o escritor em entrevista à Lusa, durante uma passagem por Lisboa para o lançamento daquele que é o seu terceiro livro.
Revelando-se "um tirano com o que pode", o personagem acaba por protagonizar uma cena da violência que é captada e difundida na Internet, gerando um movimento popular que o agride na rua, destrói a sua imagem, a sua carreira e ainda leva a que a sua mulher, que nada tinha a ver com o sucedido, seja despedida do emprego.
O autor quis explorar esta ideia do poder das redes sociais e das pessoas, através do seu uso, que tem efeitos positivos, mas que pode tornar-se perigoso e excessivo, mesmo que a intenção seja boa e a pessoa deva ser punida.
"A premissa é absolutamente legítima, mas ela começa a se tornar monstruosa depois, e eu acho que a cultura do cancelamento tem esse traço. Eu acho que certos debates são necessários, acho ótimo que o público tenha voz".
Um dos bons exemplos apontados foi o movimento 'Me Too', que considerou "fundamental" e "uma das grandes vitórias da sociedade".
"Mas ele também é perigoso, quando se torna essa coisa como as bruxas de Salem: agora posso pegar qualquer pessoa e não vejo se há processo legítimo de provar e ver se realmente aconteceu. Não, se alguém falou, a gente já vai absolutamente esmagar essa pessoa, acabar com tudo dela e sem chance de defesa nenhuma. Isso também é perigoso, isso é muito perigoso, porque isso também é um extremismo, também é uma opressão, e que está criando outra coisa, outro fenómeno, que é uma autocensura prévia".
Na opinião de Rafael Gallo, o melindre pode levar a que se deixe de dizer coisas importantes por medo de usar expressões erradas, como aconteceu com o próprio, quando, certa vez, foi atacado na Internet por ter usado uma "expressão errada", ao defender uma mulher.
"Seres humanos. Parece uma vontade de sempre ter algum poder sobre o outro. A cultura de cancelamento às vezes vira um poder também e é preciso começar a tomar cuidado, senão a gente vira um monstro que quer combater outro monstro", afirmou, admitindo que possa haver alguma indignação com linguagem misógina e de ataque à deficiência usada no livro.
No entanto, destaca que era fundamental manter esse padrão, porque quem o usa é uma "personagem detestável" em relação à qual "não dá para fazer assepsia", uma pessoa que nunca se referirá a outro como pessoa portadora de necessidades especiais.
"Senão daqui a pouco a gente começa a falar assim, tem um personagem racista mas só usa os termos politicamente corretos. É preciso colocar, senão causa o efeito contrário, começa a limpar o racista, a limpar o xenófobo, ele vira um xenófobo polido. Ele não tem de ser polido, tem de ser mostrado", afirmou.
A amputação do personagem principal exigiu do autor muito trabalho de pesquisa para compreender o que sente e por que passa uma pessoa que sofre um acidente desses, e uma das primeiras coisas que fez foi entrevistar pessoas que foram amputadas e profissionais que trabalham com elas.
Rafael Gallo conta que a sua principal curiosidade era entender "essa questão da sensação do membro fantasma", que acaba por dar título ao livro.
Em "Dor fantasma", Rafael Gallo aborda também a paternidade, através da relação de Rômulo com o seu pai e com o seu filho, depois de no romance anterior, "Rebentar", se ter centrado na maternidade.
O pai de Rômulo, também músico, impõe uma educação conservadora e feroz ao filho, que este segue ao longo da vida e quer replicar no seu filho, em quem deposita as maiores expectativas.
Querendo que o filho seja "uma extensão dele próprio", batiza-o com o nome Franz, em homenagem a Franz Liszt, mas quando o filho quebra a expectativa, fica completamente apagado e os laços afetivos quebram-se definitivamente.
"Os temas das relações familiares são muito fortes e isso vai moldar a nossa relação com o mundo", afirmou, considerando que os homens têm um tipo de educação, em que a parte afetiva não é falada, e é centrada em trabalhar, produzir, destacar-se, tudo ligado ao capitalismo e ao produzir capital.
Essa foi a sua educação, também muito regida pela Igreja, e Rafael Gallo, que se rebelou contra esse 'status quo', como afirmou, sentiu que "era a hora de lidar com esses temas" e com esta "cultura machista e patriarcal".