Igrejas de vários países decidiram de modo diferente face a abusos de menores
Os bispos portugueses anunciam na sexta-feira o que fará a Igreja após a análise do relatório sobre os abusos sexuais de crianças divulgado há duas semanas. Face à mesma questão, vários países tomaram decisões diversas.
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica divulgou no passado dia 13 um relatório sobre o trabalho que realizou durante um ano, indicando ter recebido 512 testemunhos validados, o que permitiu a extrapolação de, pelo menos, 4.815 vítimas.
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, já pediu desculpa às vítimas, mas muitos esperam que a Igreja faça mais.
Irlanda, França, Estados Unidos, Alemanha, Chile e Austrália estão entre os países nos quais foram investigados abusos sexuais na Igreja e em alguns, além das desculpas, a Igreja indemnizou as vítimas.
Comum em todo o mundo é a inicial desvalorização das queixas pela Igreja e o seu encobrimento dos autores dos abusos, por vezes durante muitos anos.
Eis o que se passou a nível internacional:
VATICANO
Em 2013, quando Francisco iniciou o seu pontificado, o Vaticano criou uma comissão especial destinada a proteger os menores vítimas de abusos sexuais na Igreja e, em 2018, depois de uma série de escândalos envolvendo figuras destacadas da Igreja Católica, o Papa chamou de urgência os bispos de todo o mundo para dar início a uma reforma interna.
O Papa tem insistido numa política de "tolerância zero" para casos de abusos sexuais na Igreja Católica.
ESPANHA
A Igreja Católica espanhola reconheceu pela primeira vez em abril de 2021 um total de 220 casos de violência sexual contra crianças registados em 20 anos e dos quais deu conta à Congregação para a Doutrina da Fé, instituição do Vaticano.
A 11 de março de 2022, divulgou a existência de 506 casos de abuso sexual contra menores, que a Conferência Episcopal Espanhola prometeu esclarecer.
O parlamento espanhol anunciou no ano passado a criação de uma comissão, presidida pelo Provedor de Justiça, para investigar, pela primeira vez de forma oficial, os alegados abusos a menores pela Igreja.
Na ausência de dados oficiais, o jornal El País lançado o seu próprio inquérito em 2018, listando até ao início deste ano 1.741 vítimas.
FRANÇA
Mais de 300.000 menores foram abusados e agredidos em instituições da Igreja Católica francesa, 216.000 dos quais por clérigos e religiosos, entre 1950 e 2020, segundo um relatório da Comissão Independente sobre os Abusos da Igreja em França.
A comissão trabalhou durante dois anos e meio e identificou no relatório, divulgado em outubro de 2021, cerca de 3.000 abusadores - dois terços dos quais padres - que trabalharam na igreja francesa durante os 70 anos analisados.
Os 22 alegados crimes que ainda não tinham prescrito foram encaminhados para as autoridades judiciais.
A Igreja anunciou um apoio financeiro às vítimas de abusos sexuais contra menores cometidos por membros do clero desde 1950 e os bispos franceses disseram que venderiam bens das suas dioceses ou recorreriam a empréstimos para indemnizar as vítimas, não impedindo, no entanto, os fiéis de fazerem doações com tal propósito.
Na sequência das conclusões daquela comissão, foi criada uma Comissão de Reconhecimento e Reparação, que estabeleceu como limite máximo previsto para a indemnização 60 mil euros, valor contestado por algumas das vítimas.
Até hoje, menos de 1% dos sobreviventes iniciaram um processo de reparação.
IRLANDA
Desde 1980 que a Igreja Católica da Irlanda esteve no centro de vários escândalos, incluindo abusos sexuais de menores, mas também adoções ilegais e raparigas exploradas por freiras.
As primeiras acusações surgiram naquela década e, desde 2002, vários relatórios e investigações deram conta de mais de 15.000 casos de abuso sexual cometidos entre as décadas de 1960 e 1990.
A violência sexual levou centenas de vítimas ao suicídio.
As denúncias resultaram em julgamentos civis e criminais e o governo criou um mecanismo de compensação financeira, mas a Igreja irlandesa, acusada de "fechar os olhos" aos abusos, resistiu a pagar indemnizações, embora se tenham registado demissões na hierarquia católica.
ESTADOS UNIDOS
Mais de 6.500, ou 6% dos padres dos Estados Unidos, foram acusados de molestar crianças desde 1950 e a Igreja Católica pagou mais de 3.000 milhões de dólares (2,8 mil milhões de euros) em acordos com as vítimas, segundo estudos encomendados por bispos norte-americanos e artigos divulgados pelos 'media'.
Na Pensilvânia, uma investigação divulgada em agosto de 2018 identificou mais de mil vítimas e 300 padres agressores entre a década de 1940 e o início dos anos 2000.
Em outubro de 2020, a diocese de Rockville Centre, em Nova Iorque, declarou falência por não conseguir fazer face aos custos com os processos judiciais de abuso de menores pendentes, depois de ter compensado mais de 300 vítimas desde 2017.
Uma lei do estado de Nova Iorque permitiu às vítimas denunciar abusos durante dois anos, sem ter em conta o prazo de prescrição.
Os abusos sexuais sistemáticos e os esforços da Igreja nos EUA para os encobrir terão sido divulgados publicamente pela primeira vez em artigos do jornal Boston Globe, sobre a diocese de Boston, em 2002.
Após o escândalo, foram apresentados perto de 500 processos contra dezenas de padres e por negligência contra a arquidiocese de Boston e, em 2003, chegou-se a um acordo com as vítimas de quase 85 milhões de dólares (79,7 milhões de euros).
A investigação do jornal deu origem ao filme "O caso Spotlight", que conquistou em 2016 o Óscar de Melhor Filme e o de Melhor Argumento Original.
ALEMANHA
Em março de 2021 foi apresentado um relatório independente pedido pela Igreja Católica na Alemanha que concluiu que 314 menores foram vítimas de violência sexual por parte de 202 membros do clero e leigos entre 1975 e 2018 na diocese alemã de Colónia, a maior do país.
Após a divulgação do relatório, que revelou que altos funcionários da diocese tinham sido negligentes na denúncia e tratamento dos abusos, o arcebispo de Hamburgo demitiu-se.
Um outro relatório, também encomendado pela Igreja e divulgado em janeiro de 2022, denuncia um encobrimento sistemático de casos de abuso de menores entre 1945 e 2019 na arquidiocese de Munique e Freising.
Entre os responsáveis daquele arcebispado acusados de nada terem feito para prevenir ou parar os abusos é nomeado o cardeal Joseph Ratzinger, que liderou a arquidiocese entre 1977 e 1982, antes de ser eleito Papa em 2005.
O Papa Bento XVI renunciou em 2013 e foi como Papa emérito que rejeitou qualquer responsabilidade no caso.
O Vaticano assinalou que Ratzinger combateu o fenómeno "como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé" e promulgou como Papa "regulamentos extremamente severos contra clérigos que abusam", além de ter sido "o primeiro Papa a encontrar várias vezes as vítimas de abusos durante as suas viagens apostólicas".
O Papa Francisco, por seu turno, reiterou que a Igreja continuava firme no seu compromisso de fazer justiça às vítimas, depois de o Vaticano ter expressado, logo após a divulgação do relatório, o seu "sentimento de vergonha e remorso".
AUSTRÁLIA
Uma comissão real australiana sobre como a Igreja Católica e outras instituições no país responderam ao abuso sexual de crianças ao longo de mais de 90 anos recebeu cerca de 4.500 denúncias em quase 1.000 instituições católicas, entre 1980 e 2015.
Entre as vítimas estavam sobrerrepresentadas as crianças de origem aborígene e das Ilhas do Estreito de Torres, alvo da política assimilacionista, que as retirava à família à força e as colocava em lares residenciais entre 1905 e os anos 70.
O relatório da comissão, divulgado em 2017, concluía ter havido "falhas catastróficas na liderança das autoridades da Igreja Católica durante muitas décadas" e implicava centenas de religiosos, 93 dos quais altos cargos da Igreja.
O cardeal australiano George Pell foi o mais alto responsável da Igreja Católica a enfrentar acusações, tendo sido formalmente acusado de cinco agressões sexuais a dois menores, nos anos 1990, quando ocupava o cargo de secretário para a Economia, a terceira figura mais importante do Vaticano.
Condenado a seis anos de cadeia em dezembro de 2018 pelos atos cometidos na igreja de St. Patrick quando era arcebispo de Melbourne, Pell foi libertado ao fim de 404 dias na prisão, após o Tribunal Superior da Austrália o absolver.
A comissão recomendou à Conferência Episcopal Australiana que pedisse ao Vaticano para considerar a introdução do celibato voluntário para o clero, bem como que fosse esclarecida a questão do segredo da confissão quando estão em causa provas de crimes contra menores.
Aconselhou ainda o pagamento de uma indemnização com o limite máximo de 200.000 dólares australianos (perto de 127.000 euros), que o governo reduziu para 150.000 dólares australianos (95.000 euros) e que deveria ser paga em parte pela Igreja.
Alguns dos sobreviventes de abusos também obtiveram indemnizações através dos tribunais civis.
NOVA ZELÂNDIA
A Igreja Católica da Nova Zelândia revelou publicamente em fevereiro de 2022, pela primeira vez, a escala dos abusos, incluindo sexuais, realizados desde os anos 50 pelo clero e outros religiosos contra mais de mil pessoas, metade das quais menores.
O relatório revelava que quase metade das 1.680 queixas, feitas por 1.122 pessoas, envolvia danos sexuais ocorridos principalmente em instalações educativas ou lares residenciais e que 75% dos abusos ocorreram antes da década de 1990.
Dois anos antes, a comissão governamental tinha revelado num documento preliminar que cerca de 250.000 crianças e adultos vulneráveis tinham sido maltratados desde 1950.
O Cardeal John Dew, presidente da Conferência dos Bispos Católicos da Nova Zelândia, disse que estas estatísticas eram "horríveis". "Algo de que nos envergonhamos profundamente", frisou.
CANADÁ
Durante uma viagem ao Canadá em julho de 2022, o Papa Francisco pediu perdão aos indígenas canadianos pelos abusos cometidos em colégios católicos no passado, lamentando que alguns membros da Igreja tenham "cooperado" em políticas de "destruição cultural".
De 1800 a 1980, perto de 150 mil crianças indígenas foram obrigadas a abandonar as famílias e a frequentar colégios estatais, a maioria dos quais era gerido pela Igreja Católica. Milhares das crianças foram alvo de abuso sexual e pelo menos 6.000 crianças morreram nessas instituições.
A política de assimilação foi apelidada por uma comissão de inquérito, lançada pela igreja, de "genocídio cultural".
No Canadá, o Papa disse que o seu pedido de desculpas era um primeiro passo, defendendo uma "investigação séria" sobre os abusos para que os traumas dos sobreviventes pudessem ser superados.
ÁUSTRIA
Em 2020 foi criada uma comissão a pedido do arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn, quando foram revelados os primeiros casos de abusos contra menores na Igreja Católica austríaca.
Um ano depois, a comissão revelou ter sido contactada por 837 alegadas vítimas, cujos casos ocorreram nos anos 1960 e 1980, a maioria em cinco instituições católicas.
A comissão independente encaminhou a informação sobre os casos de abusos sexuais ao Ministério Público e determinou a necessidade de compensação financeira em 192 casos.
Estas indemnizações seriam pagas às vítimas reconhecidas através de um fundo de compensação criado pela Igreja Católica austríaca.
A presidente da Comissão, Waltraud Klasnic, ex-governadora do estado federado de Estíria, disse que em "mais de 200 casos", as vítimas de abusos sexuais "puderam escolher entre se queriam um "pedido de desculpa, terapia ou ajuda financeira".
POLÓNIA
A Igreja Católica da Polónia admitiu, em março de 2019, que 382 membros do clero tinham abusado sexualmente de 625 crianças entre 1990 e 2018.
Assinalando que os dados resultaram de um questionário voluntário às dioceses, ativistas de uma organização que ajudava vítimas disseram que os números da Igreja eram "manifestamente inferiores" ao real, representando apenas 0,8% do clero polaco, segundo o centro de reflexão Child Rights Internacional Network.
Depois da divulgação do relatório, o Arcebispo Primaz da Polónia pediu desculpa às vítimas publicamente.
TIMOR-LESTE
Em setembro de 2022, o Nobel da Paz Ximenes Belo, ex-bispo de Díli, foi acusado de abusar sexualmente de menores nas décadas de 1980 e 1990, em Timor-Leste.
O jornal holandês De Groene Amsterdammer publicou testemunhos de alegadas vítimas e disse ter ouvido outras 20 pessoas com conhecimento do caso, incluindo "individualidades, membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja".
Indicou que as primeiras investigações aos alegados abusos remontam a 2002, quando um timorense denunciou que o seu irmão era vítima de abusos.
Em novembro desse ano, Ximenes Belo anunciou a sua resignação, alegando problemas de saúde e a necessidade de um longo período de recuperação.
Após a divulgação do artigo, o Vaticano anunciou ter imposto sanções disciplinares ao bispo timorense em 2020, depois de ter tido conhecimento de alegados abusos sexuais de menores por parte do Nobel da Paz.
Estas sanções incluíam limites aos movimentos do bispo e ao exercício do seu ministério, bem como a proibição de manter contactos voluntários com menores ou com Timor-Leste.
As medidas foram "modificadas e reforçadas" em novembro de 2021 e em ambas as ocasiões Ximenes Belo, atualmente a residir em Portugal, aceitou formalmente o castigo, segundo o Vaticano.
MÉXICO
O representante do Papa Francisco no país, Franco Coppola, admitiu em maio de 2021 que membros da Igreja mexicana "encobriram" durante anos os casos de abusos no país, pelos quais há mais de 271 padres denunciados, segundo Instituto Humanitas Unisinos (IHU), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Brasil.
COLÔMBIA
A Igreja católica colombiana anunciou no mês passado que vai pedir perdão às vítimas de abusos sexuais praticados no país pelos seus membros.
CHILE
O Comité Permanente da Conferência Episcopal do Chile publicou uma lista com os nomes de 43 padres e um diácono condenados, pela justiça civil ou canónica, por abuso sexual de menores.
O caso do padre Fernando Karadima, condenado em 2011 pela justiça canónica a uma vida de reclusão e penitência por ter abusado sexualmente de pelo menos quatro menores nos anos 1980, foi um dos que se destacou.
Karadima foi encoberto durante décadas por uma rede de padres e bispos, entre os quais Juan Barros, nomeado bispo em março de 2015 pelo Papa Francisco.
O Papa admitiu mais tarde ter cometido "erros graves" na análise do escândalo e recebeu no Vaticano as vítimas, a quem pediu desculpas pessoalmente.
Até maio de 2018, os 34 clérigos implicados no caso apresentaram a demissão, incluindo Juan Barros.