Crónicas

Um carreiro de vasos em flor

A minha mãe precisava de todos braços e mãos para cuidar daquela que era, de facto, a sua paixão, à qual dedicava carinho e atenção como se fossem pessoas

As minhas orquídeas estão em flor e ainda me parece estranho nomeá-las assim, como minhas. Ali estão, alinhadas num carreiro de vasos em cima do terraço, dispostas como antes, no tempo em que a minha mãe lhes dedicava horas de trabalho e atenções. Nesse tempo eu ainda brincava sozinha pela casa, embrulhada numa cortina velha, que tanto me parecia um vestido de princesa como a capa de uma bruxa.

E devo ter ido assim, com a cortina velha e o chapéu de palha na cabeça, espreitar quem tocava a campainha da entrada. Ou eram mulheres dos bordados ou mulheres das flores ou alguém para comprar ovos, a minha mãe geria os três negócios e havia sempre alguém a entrar ou sair. As mulheres das flores levavam jarros, estrelícias, mas pagavam melhor sapatinhos e orquídeas.

Lembro-me de andar a imaginar histórias pelo quintal, enquanto ouvia as conversas. “Olhe que esta qualidade não vende tão bem, não lhe posso dar mais do que 10 escudos por flor” e a minha mãe a dizer que, se era assim, ficava no cântaro ou ia para a igreja, para enfeitar o altar na Quinta-Feira Santa. O dinheiro fazia-lhe jeito, a minha mãe lutava como uma leoa para o arranjar, mas era orgulhosa e rija a regatear, não lhe levavam assim as flores.

“São 200 escudos pelas três hastes e não se fala mais nisso”. E o dinheiro saía todo dobrado do porta-moedas da senhora, quase sempre a mesma. Uma mulher de cabelo pintado de preto que usava vestidos às flores e fazia a ronda pelos quintais da vizinhança antes de se meter no autocarro para ir vender os ramos às floristas da cidade.

A minha mãe não queria saber para onde iam, depois de vendido voltava-se para o quintal onde uma fila de vasos contornava o terreiro de um lado e de outro. E todos os anos floriam hastes roxas, verdes, verde limão, lilás, cor-de-rosa, umas maiores e outras mais pequenas, todas cheias de segredos e manias. Ou havia sol a mais, ou a menos, a chuva fazia mal, o vento também e a minha mãe mudava-as de sítio, protegia-as.

Trocava bolbos com as minhas tias e as primas e todos os anos ia à olaria comprar uma remessa de vasos de barro, assim por altura de dispor as plantas e depois de nos levar pelos pinheiros adentro para encher umas sacas de terra vegetal. O que só acontecia depois de subornar o meu irmão com um par de sapatilhas novas ou com uma autorização para ir acampar. Eu, que ainda brincava às princesas e às fadas, tinha pouca agilidade para trepar rocha assim, mas ia.

A minha mãe precisava de todos braços e mãos para cuidar daquela que era, de facto, a sua paixão, à qual dedicava carinho e atenção como se fossem pessoas. Tantos anos depois disso, tantos anos depois de ter deixado de brincar enrolada numa cortina velha de renda e com um chapéu de palha na cabeça, as orquídeas, o que sobra desse amor da minha mãe, estão em flor.

E todas descendem das mesmas plantas, mudaram de vasos, deram rebentos, sobreviveram tal como a minha mãe queria que acontecesse. A memória estaria ali, sempre, dizia-me, repetia-me, como quem passa um legado, uma herança.