Madeira

Reforma da justiça tem sido “irrealizável porque todos desconfiam de todos”

Foto Miguel Espada/Aspress
Foto Miguel Espada/Aspress

O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares, teme que a “reforma de longo fôlego” que o Presidente da República pediu na abertura do ano judicial seja “irrealizável” porque, entre outros motivos, “todos desconfiam de todos”. A posição foi assumida na sessão de encerramento do XII Congresso dos Juízes Portugueses, que decorreu nos últimos três dias no Funchal.

“Receio ter as maiores dúvidas que seja algum dia possível que alcancemos esse objectivo, de congregar as principais forças políticas, as profissões jurídicas, as academias e os outros saberes relevantes para pensar numa reforma transversal e integrada do sistema de justiça a médio prazo”, declarou o porta-voz dos juízes, que enumerou os motivos que o levam a ter esta perspectiva céptica. Em primeiro lugar, porque “todos são capazes de dizer que a justiça está em crise, mas ninguém ainda identificou a natureza dessa crise”, designadamente se é um problema de eficiência, independência, integridade ou responsabilização que carece de medidas correctivas. A reforma da justiça também não avança porque “os partidos políticos são mais dados à controvérsia que ao consenso” e porque “há forças partidárias mais interessadas em destruir que em construir”. “Os governos, as maiorias e as oposições têm um horizonte de interesse que não ultrapassa o período da legislatura e mais facilmente se comprometem com medidas que dão apoio imediato do que com outras cujos benefícios só mais longe se alcançam”.

O sistema de justiça não se regenera ainda “porque todos desconfiam de todos”. “Os políticos desconfiam dos juízes e dos procuradores do Ministério Público. As magistraturas desconfiam dos políticos. Juízes, procuradores do Ministério Público e advogados desconfiam todos uns dos outros”, observou Manuel Soares, que entende que “esta visão desconfiada, defensiva e sectária sobre o modo como funcionam as democracias e como devem coexistir e cooperar os poderes soberanos é errada e ultrapassada”.

Apesar deste clima, a ASJP criou um grupo de trabalho que apresentou possíveis vias para uma reforma da justiça com valor estrutural, sugerindo medidas como auditorias periódicas autónomas à qualidade da resposta dos tribunais, à acção dos sistemas de inspecção e disciplinar, à qualidade do trabalho dos presidentes dos tribunais e ao sistema de distribuição automática de processos.

Com a ministra da Justiça na sala do Congresso, o presidente da ASJP recordou a Catarina Sarmento e Castro as “áreas problemáticas” que precisam de “uma intervenção mais decidida e mais pronta do governo e que ainda estão sem resposta”. É o caso do problema dos processos atrasados nos tribunais administrativos e fiscais, que “não têm solução à vista”. “Há pessoas e empresas que vão ter de continuar a aguardar anos e anos por uma decisão final nos seus litígios com o Estado. Isto é simplesmente inaceitável”, alertou.

No processo penal, na criminalidade económico-financeira complexa “a realidade que se constata quando estão envolvidas pessoas com poder na política, na banca, nos negócios, no desporto, na justiça, é que os processos não têm fim” e “há casos que dificilmente chegarão a uma decisão final antes da prescrição” e “também isto não pode estar certo”. O presidente da ASJP defende ainda uma intervenção legislativa que acabe com as possibilidades de exercício abusivo e ilegítimo de alguns direitos, sugerindo que “nas situações de manifesto abuso de direitos processuais, a lei conceda ao juiz o poder de, por decisão irrecorrível, determinar o prosseguimento do processo sem entraves até ao julgamento, relegando para um apenso toda a discussão dos incidentes supérfluos e anómalos”. “Agora a moda é pedir-se o afastamento do juiz por violação das regras de distribuição, com fundamento no facto da tal lei não estar a ser aplicada. Será normal, legítimo, aceitável, que um só advogado, num só tribunal de recurso, em 9 meses, suscite 23 incidentes de recusa dos juízes, 2, 3 e 4 vezes nos mesmos processos e que não haja maneira de por termo a isso, apesar das sucessivas decisões que negam provimento aos seus pedidos?”, questionou Manuel Soares.

Outro apelo à ministra da justiça é para que haja maior controlo, transparência e integridade nesses mecanismos de justiça privada: “Não está certo, não pode estar certo, que o Estado seja condenado por um tribunal arbitral, secreto, sem controlo de legalidade do Ministério Público, a pagar a uma empresa privada centenas de milhões de euros por violação de uma cláusula contratual que o tribunal de contas já tinha dito que era nula.

Ainda nas questões para as quais pediu uma intervenção governativa urgente, chamou à atenção para o problema dos funcionários judiciais, que “têm razão” e apresentam um quadro reivindicativo que “é justo e razoável”. “Não se pode adiar mais a aprovação de um novo estatuto que alcance um consenso que permita ponha termo à grave perturbação causada no funcionamento dos tribunais por um clima de crispação generalizada, de desânimo e desmotivação do corpo profissional que dá apoio à administração da justiça e de paralisações e greves que adiam milhares de diligências e introduzem novos factores de ineficiência”, destacou.

Manuel Soares pediu aos conselhos superiores das magistraturas um “aperto” no “filtro à entrada na carreira quando fossem sinalizadas dúvidas relativas à idoneidade pessoal dos candidatos no período formativo” dos futuros juízes, já que a “justiça falhou aos cidadãos quando não detectou atempadamente actos de natureza corruptiva dentro do sistema de justiça e quando não foi capaz de assumir publicamente essa falha”. E por fim, defende limitações às chamadas “portas giratórias”, designadamente nas autorizações para que juízes possam exercer funções fora da magistratura.

Este Congresso marca a despedida de Manuel Soares da presidência da ASJP. Após 17 anos no associativismo, o dirigente pretende sair de funções em Abril de 2024.