Os gatos no Pico do Areeiro são "o maior perigo" para a Freira-da-Madeira?
A secretária regional do Ambiente, Recursos Naturais e Alterações Climáticas afirmou no debate parlamentar, a 1 de Março, quando foi confrontada pelo PS sobre a crueldade do abate de gatos asselvajados que têm sido capturados em gaiolas nas serras da Madeira pelo Instituto de Florestas e Conservação da Natureza (IFCN), que “os gatos no Pico do Areeiro são o maior perigo para uma espécie em vias de extinção, a Freira-da-Madeira”. Será verdade?
A predação daquela espécie endémica da Madeira por parte dos animais felinos não é de hoje. O Atlas das Aves indicava, já em Outubro de 2009 que os gatos asselvajados eram um dos factores de ameaça à preservação daquela que é reconhecidamente uma das aves marinhas mais raras do mundo cuja descoberta remonta a 1934, quando então foi baptizada com o nome científico de Pterodroma madeira.
Historicamente as populações foram afectadas por diversos factores, como a captura pelo Homem ou a contínua degradação do habitat devido à acção de herbívoros introduzidos (cabras, coelhos e ovelhas). Actualmente, o principal factor limitante é a predação de ovos e juvenis por ratos, e de juvenis e adultos por gatos asselvajados Atlas das Aves, Outubro de 2009
Sendo factual que os gatos asselvajados são, a par dos roedores, uma ameaça à espécie, serão “o maior perigo” para a Freira-da-Madeira, conforme classificou Susana Prada? Terá o número de animais felinos se multiplicado nas serras ao ponto de se tornar, ao fim de 12 anos, no principal predador daquelas aves marinhas em vias de extinção?
Dois factores determinantes podem ajudar a explicar a evolução das populações de gatos errantes nas serras da ilha da Madeira onde nidificam as aves: a reprodução, o controlo de pragas e a caça.
Se por um lado, os ratos têm sido alvo de campanhas de desratização e de outros métodos para o controlo de pragas (devido à elevada capacidade reprodutiva) tendo em vista a protecção dos juvenis da Freira-da-Madeira em particular e da fauna endémica da Madeira em geral, também o coelho-bravo que tem estado na mira dos caçadores em cada época venatória, sendo esse também um factor de controlo dos roedores. Quanto aos gatos asselvajados que se adaptaram aos ambientes serranos, têm se reproduzido naturalmente, multiplicando-se com relativa facilidade e em grandes ninhadas.
Só mais recentemente é que o Governo Regional, alertado para a crescente ameaça, decidiu mandatar o Instituto de Florestas e Conservação da Natureza (IFCN) para que fosse implementado um método de captura por meio de jaulas e posterior eliminação através de eutanásia por médicos veterinários. Uma decisão que está longe de reunir consenso não só no parlamento como também na comunidade, levando mesmo o Provedor do Animal a levar o caso à Ordem dos Veterinários e a ponderar a formalização de queixa-crime, conforme o DIÁRIO revelou na edição de hoje.
Provedor do Animal faz queixa contra o Governo
Provedor do Animal faz queixa contra o Governo. João Henriques de Freitas não concorda com o método utilizado para eliminar gatos no Areeiro. Fez participação à Ordem dos Veterinários e pondera recorrer à Justiça. Este é o assunto que faz manchete na edição impressa de hoje do DIÁRIO e que pode ler na página 13.
Mas que garantias ou provas tem o Governo Regional para acusar os gatos de serem “o maior perigo” para a ave marinha se há outros predadores que também “comem as freirinhas”, para usar as palavras de Susana Prada, ao ponto de decidir eutanasiá-los?
O IFNC dispõe de um programa de monitorização da Freira-da-Madeira, ao abrigo do projecto de conservação apoiado pelo projecto LIFE-Natureza, através do qual é possível acompanhar o comportamento e o habitat da espécie. Iniciado em 2021, este projecto decorre até 2026 e dispõe de um orçamento de 1,8 milhões de euros, co-financiado a 70% pelo programa LIFE Natureza da Comissão Europeia, sendo coordenado pelo IFCN em parceria com a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e com o Grupo XGT.
Através deste projecto será possível melhorar as condições de nidificação, aumentar o conhecimento sobre a sua biologia e ecologia bem como combater as ameaças através do uso de novas tecnologias, nomeadamente através da monitorização de predadores com recurso a inteligência artificial, conforme revelou a secretária regional do Ambiente, numa visita ao Pico do Areeiro, na quarta-feira.
O DIÁRIO sabe que numa das câmaras de videovigilância com infra-vermelhos desse programa de monitorização, instaladas em alguns ninhos da ave marinha, foram detectadas situações flagrantes de predação.
Um dos flagrantes demonstra a presença de um gato numa acção de emboscada junto a um ninho da Freira-da-Madeira. Conhecendo o comportamento e os hábitos alimentares da ave (durante o dia procura alimento no mar, retornando ao ninho apenas à noite), o felídeo aguardou durante toda a noite até ao momento em que a Freira saiu do ninho. Mal colocou a cabeça de fora foi atacada e devorada.
Sabe-se que há pelo menos 5 casos de morte por gatos selvagens, o que numa população de 80 casais de aves e sendo esta uma espécie ameaçada e única no mundo, não deixa de ser altamente impactante.
Média de um gato selvagem eutanasiado por mês
O DIÁRIO tentou saber junto do IFCN quantos gatos foram capturados nas armadilhas e eutanasiados, assim como qual a estimativa de felinos naquela área do Pico do Areeiro e Pico Ruivo, habitat natural da Freira-da-Madeira. O IFCN respondeu que em média é eutanasiado um animal selvagem por mês, considerando difícil calcular a dimensão da população de felinos que deambulam na serra, devido às condições orográficas do terreno.
Nos últimos meses foi eutanasiado em média um animal selvagem por mês. Tendo em conta a orografia do terreno, é muito difícil fazer uma estimativa da população existente" Manuel Filipe, presidente do IFCN
O Instituto de Florestas sublinha que não estão em causa animais errantes ou gatos domésticos, mas segundas ou terceiras gerações de gatos abandonados e que já nasceram e adaptaram-se à serra, não sendo possível inverter o processo ao ponto de domesticá-los.
São animais que nasceram na serra sem qualquer possibilidade de socialização com humanos" Manuel Filipe, presidente do IFCN
Medidas de conservação remontam aos anos 90
As primeiras medidas de conservação remontam ao início dos anos 90, com a criação de uma área livre de predadores em redor de áreas de nidificação conhecidas pelo IFCN. Desde 2001, ao abrigo do projecto LIFE-Natureza, foi iniciada a recuperação do ‘habitat’ e consequentemente das zonas de nidificação, através da retirada de gado ali existente.
Livre da acção dos herbívoros, os juvenis e adultos da espécie Freira-da-Madeira têm enfrentado a ameaça de ratos, coelhos e gatos que têm sido abandonados nas áreas limítrofes entre a malha urbana e a mancha florestal e que ao longo de décadas se adaptaram ao ambiente serrano fazendo uso do seu instinto de sobrevivência.
Esta ave nidifica numa área restrita da Ilha da Madeira, na zona Oriental do Maciço Montanhoso Central, acima dos 1600 metros de altitude. Os ninhos são escavados no solo, em locais onde o coberto vegetal se encontra em bom estado de conservação. “Em 2003 foram encontrados ninhos em áreas dominadas por gramíneas, o que constituiu um dado novo para a definição das áreas potenciais para a nidificação da espécie”, assinala o Altas das Aves.
É uma das aves marinhas mais raras do Mundo e esteve considerada extinta até aos finais da década de 60 do século passado, altura em que foi redescoberta. Neste momento, as populações desta espécie apresentam uma tendência de crescimento aparentemente favorável" Atlas da Madeira
Em 2009, esta espécie que nidifica exclusivamente na ilha da Madeira contava com um efectivo populacional de 60 a 75 casais reprodutores e hoje são perto de 80, segundo os números avançados pela secretária do Ambiente.
"Neste momento, fruto do empenho, de muitos anos, do IFCN, podemos considerar que a conservação da Freira-da-Madeira é um caso de sucesso. Passámos de uma espécie quase extinta para os 65 a 80 casais" Susana Prada, secretária regional do Ambiente, Recursos Naturais e Alterações Climáticas