Porta-voz dos juízes admite que actual modelo de justiça foi “concebido para uma sociedade que já não existe”
“Como não pensar em mudar um modelo de funcionamento [da justiça], essencialmente concebido nos anos 80, para uma sociedade que já não existe?”. A questão foi colocada pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares, na abertura do XII Congresso dos Juízes Portugueses, que decorre esta tarde, no Centro de Congressos da Madeira, com o tema 'Democracia, Direitos, Desenvolvimento'.
A intervenção inicial do porta-voz da entidade organizadora foi dedicada precisamente à urgência de reformar o sistema de justiça em Portugal, o qual, reconheceu, “não funciona com suficiente qualidade e celeridade” e precisa de ser “preparado para enfrentar os desafios das próximas décadas”. Entre os “imensos desafios” que se colocam, Manuel Soares apontou a necessidade de adaptação às “alterações drásticas que ocorreram no período de uma geração”.
Assim, de “uma sociedade indiferente e alheada da justiça” passou-se para uma “exigente e próxima”, em que “a vida pública judicializou-se e colocou os tribunais no centro da controvérsia política”. Os casos que chegam à justiça são hoje “mais complexos, mais variados, mais especializados”. O juiz nacional do ordenamento jurídico homogéneo limitado por fronteiras geográficas é agora o juiz global, chamado a aplicar normas de tratados internacionais e a cooperar com sistemas judiciais estrangeiros. O processo físico em papel foi substituído por informação desmaterializada, armazenada em bases de dados, e parte significativa da justiça, mesmo no momento mais simbólico do julgamento, já não se faz sequer dentro das paredes dos tribunais.
Na componente organizativa, os conselhos superiores de magistratura e os órgãos de gestão dos tribunais profissionalizaram-se e ganharam competências que não tinham. “Os administradores judiciais, dependentes do governo, têm poderes que em muitas situações interferem directamente com o trabalho judicial. Competência essas que exercem muitas vezes com insuficiente controlo, de presidentes que podem mas não se querem impor e de juízes que querem mas não se podem impor. A relação de liderança do juiz na unidade administrativa que lhe devia dar apoio descaracterizou-se sem regresso. O juiz manda fazer uma coisa e o funcionário faz outra”, exemplificou o presidente da ASJP. Entretanto, “o invencível desafio da inteligência artificial está aí, a bater à porta dos tribunais, com riscos sérios de descaracterização e desumanização da justiça”.
Neste contexto de rápida e profunda evolução, Manuel Soares identifica “perigos enormes” que trazem novas dificuldades. Por exemplo, “o exercício do poder judicial está cada vez mais funcionalizado” devido à pressão dos números e da rapidez de resposta e da produtividade estatística. “O afastamento físico do juiz no tribunal, permitido pelo acesso electrónico ao processo e incentivado pelas vantagens da eficiência, se não for rapidamente contido em limites razoáveis, vai aniquilar a função simbólica clássica da justiça, desumanizar o processo de análise e decisão, aumentar a probabilidade do erro, prejudicar a partilha de informação, vital para uniformidade dos procedimentos e previsibilidade da jurisprudência, e deslaçar de vez as já frágeis relações interpessoais, que são essenciais para a formação e transmissão de valores, cultura e identidade”, descreveu.
Ao mesmo tempo, pese embora os ganhos consideráveis dos últimos anos na capacidade de resposta do sistema de justiça, “persistem teimosamente, sem solução à vista, zonas de grave ineficiência em áreas sensíveis como a justiça administrativa e fiscal e a justiça penal dos processos complexos de criminalidade económico-financeira”. Manuel Soares alerta que estes problemas “fragilizam a justiça e criam tentações de estabelecimento de formas impróprias de controlo da administração da justiça”. Reconheceu ainda que “casos recentes de comportamentos de juízes e magistrados do Ministério Público, uns ainda em investigação ou julgamento e outros já sancionadas criminal e disciplinarmente como corruptivos, puseram em profunda crise a confiança dos cidadãos na integridade da justiça e na robustez dos mecanismos de controlo existentes nos conselhos superiores das magistraturas”.
Face a este quadro, o presidente da ASJP conta que o congresso que decorre no Funchal até sábado sirva para debater estas questões e apontar caminhos no sentido de “fazer melhor” e “para que a justiça, nos anos próximos, continue a ser um factor estruturante das democracias liberais”, isto num momento em que “cada vez mais as sociedades parecem caminhar no sentido de deixarem de ser Estados de direito para passarem a ser estados de autoridade, de oportunidade ou de outra coisa qualquer”.