Será verdade que Ventura Garcês teve um “desempenho brilhante” como secretário das Finanças?
O antigo secretário regional das Finanças, Ventura Garcês, passa à aposentação no início do próximo mês. De acordo com a lista publicada pela Caixa Geral de Aposentações, o ex-governante, que estava enquadrado na categoria de gestor tributário, tem direito a uma pensão mensal de 4.438 euros. O ex-presidente do Governo Regional, Alberto João Jardim, fez questão de assinalar este facto e realçou o seu “desempenho brilhante”, “sério” e de “resistência” quando esteve à frente da Secretaria das Finanças, no período 2000-2015, “então com muito menos dinheiro” e “sufocada” pelos governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho. Mas será que o seu desempenho foi mesmo “brilhante” e “sério”?
Desde o início do regime autonómico, Ventura Garcês foi o secretário regional que esteve mais tempo com a pasta das Finanças (15 anos). Foi com ele que a Região atingiu o valor mais alto da dívida pública: 6,3 mil milhões de euros em 2011 e 2012.
O facto que mais marcou o seu período na governação foi a descoberta da dívida oculta no valor 1.136 milhões de euros, relacionada com obras públicas na Madeira. No ano de 2011, o ‘buraco’ nas contas do Governo Regional precipitou a imposição de um programa de austeridade à população madeirense (PAEF), além de ter afectado a credibilidade da Região e do país junto dos mercados de colocação de dívida pública e elevado os custos do seu financiamento.
O Ministério das Finanças toma nota dos impactos no défice e na dívida pública, conforme descritos no comunicado conjunto do INE e do Banco de Portugal. Os factos hoje tornados públicos configuram uma grave irregularidade no reporte da situação orçamental e financeira. À semelhança do INE e do Banco de Portugal, o Ministério das Finanças não tem conhecimento de outras despesas e dívidas não reportadas e considera tratar-se de um caso isolado” Comunicado do Ministério das Finanças em 16 de Setembro de 2011
Nas actuais condições, em que foi conhecido pelo país uma situação que é grave e que é irregular, que tem custos de reputação para Portugal, não seria compreensível que o primeiro-ministro fizesse qualquer confusão de carácter partidário e se envolvesse na campanha eleitoral da Madeira” (...) Não caucionarei com a minha presença na Madeira esse tipo de comportamentos Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, em 20 de Setembro de 2011
Uma situação destas pode de facto afectar a credibilidade do nosso país na cena internacional Cavaco Silva, Presidente da República, em 20 de Setembro de 2011
Além das medidas de austeridade, esta viciação das contas públicas desencadeou uma investigação criminal pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). No chamado processo ‘Cuba Livre’, Ventura Garcês foi constituído arguido e indiciado pela prática dos crimes de prevaricação, violação das regras de execução orçamental e falsificação de documento. Outros dois dirigentes da Secretaria do Plano e Finanças foram também constituídos arguidos. Isto porque a Região transmitiu à Direcção-Geral do Orçamento e ao Instituto Nacional de Estatística dados falsos sobre as suas dívidas. Nas declarações que prestou no DCIAP, o então secretário das Finanças alegou ter sido enganado pelo também arguido secretário regional do Equipamento Social, Santos Costa, que mantinha uma base de dados própria no seu gabinete, onde escondia facturas de empreiteiros. Em Setembro de 2014, a procuradora Auristela Pereira concluiu que os governantes madeirenses tinham actuado de forma criminosa, mas não estavam preenchidos os requisitos que a lei exige para os acusar. Ainda houve requerimentos para abertura de instrução, mas o processo acabou arquivado.
Nos pareceres do Tribunal de Contas sobre as sucessivas contas anuais da Região Autónoma da Madeira não se vislumbra qualquer referência a um “desempenho brilhante” de Ventura Garcês, bem pelo contrário. Em média, nos anos em que Ventura Garcês foi secretário das Finanças, a referida entidade de fiscalização fez o dobro das recomendações para correcção de falhas de rigor e procedimentos de contabilidade do que nos mandatos dos seus sucessores no mesmo cargo (Rui Gonçalves, Pedro Calado e Rogério Gouveia).
Há ainda duas apreciações que o ex-presidente do executivo faz sobre o mesmo período que, no mínimo, são imprecisas. Diz que as finanças do Governo Regional contavam “então com muito menos dinheiro”. Se tomarmos como exemplo o último ano completo em que Jardim foi presidente do Governo e Ventura Garcês foi secretário regional (2014), verificamos que até houve mais receitas globais (receitas correntes e de capital) ao dispor do que no primeiro ano completo (2016) de Miguel Albuquerque e Rui Gonçalves nos mesmos cargos. É verdade que nalgumas rubricas específicas (como as dos impostos) as receitas do novo governo foram superiores, mas há que reconhecer que o quadro global não vai no mesmo sentido.
Por outro lado, Jardim afirma que foi no mesmo período que a Região “foi mais sufocada pelos colonialismos de Sócrates e de Passos Coelho”. De facto, estes dois governos da República tiveram relações complicadas como os executivos madeirenses. Há que não esquecer, contudo, que foi um governo chefiado por José Sócrates que aprovou a Lei de Meios, que previa 1.080 milhões de euros para cobrir os estragos do temporal de 20 de Fevereiro de 2010. E também há que realçar que foi no governo de Pedro Passos Coelho que a República resgatou a Região após a descoberta do citado buraco nas contas regionais. A actual Lei das Finanças Regionais é uma herança desse governo.
Em resumo, Alberto João Jardim terá certamente motivos para assumir a sua gratidão pessoal e reconhecer a lealdade política do secretário das Finanças que o acompanhou por mais tempo, mas é difícil identificar razões objectivas que justifiquem os epítetos de “brilhante” e “sério”, tanto mais que ninguém, até hoje, chegou a tão peremptória conclusão.